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Alice e a Sala das cômodas



Alice tinha uma sala na mente. Uma sala mal iluminada com algumas velas gastas. Nela havia depositado algumas dezenas de cômodas mal dispostas, suas gavetas sempre com trancas.

Era possível ver, aqui e ali, algumas folhas de papel que escapavam pelas brechas da madeira. Eram papéis amassados e amarelados, nos quais se podiam ler algumas palavras soltas: angústia, medo, vidro quebrado, lágrimas...

As cômodas, hora ou outra, rangiam, chacoalhavam, mudavam de lugar. Também sussurravam palavras que não eram possíveis de se entender.

Alice costumava ignorar aquela sala, só visitava quando precisava colocar algo novo na gaveta. Sempre uma gaveta nova, nunca abria uma já trancada.

- Vou pegar essa coisa triste, embrulhar com carinho e guardar na gavetinha bem trancada para não lembrar mais.

...


Um belo dia algo estranho aconteceu.

A quinta gaveta da décima cômoda saltou pra fora. Montes de papéis passaram a voar em tornado e se espalhar pela sala.

Alice sentiu que algo estava errado, aquele dia não conseguiu se levantar, todas aquelas memórias passavam diante de seus olhos assustados e ela não podia controlar.

Ela tentou visitar a sala, guardar os papéis de volta na gaveta, mas eles estavam livres, eram selvagens e agressivos e atacavam a menina, enchendo seus rosto e mãos de cortes que sangravam e manchavam as páginas amareladas.

E não foi só isso. As outras gavetas invejaram aquela recém liberta e dobraram seus esforços para se libertar também.

Agora a sala era tomada, não só pelos papéis impetuosos, mas também pelos gritos da madeira forçando as trincas, pelos arrastares pesados dos móveis, que hora ou outra se chocavam causando estrondo.

Mesmo quando ela saia da sala, colocava curativos nas feridas e tentava se distrair, o barulho continuava ensurdecendo seus pensamentos, e, a dor nos cortes latejava e não parava de sangrar.

...

Alice não sabia como se livrar daquela sala. Por anos levou sua vida com cortes em carne viva e gritos de pânico. Havia dias em que as cômodas se cansavam e silenciavam por algumas horas, mas apenas o suficiente para voltar mais altas e furiosas depois.

A menina desenvolveu alguns mecanismos de defesa com o passar do tempo. Criou uma nova sala na mente, lá era seu refúgio, lá ela podia viajar para qualquer lugar, ser quem quisesse, era deusa e juíza em seu próprio universo. Passava bastante tempo escondida dentro de si, fantasiando vidas melhores que a sua.

Ela também aprendeu que nas vezes em que as vozes ficavam muito altas, ela podia deixar que tomassem forma em versos. Ela abria passagem para que os gritos saíssem da sala e chegassem às mãos trêmulas que colocavam tudo no papel. Essa técnica dava a ela um período mais longo de paz, como se as vozes ficassem temporariamente satisfeitas quando ganhavam formas físicas.

...


Alice cresceu, e em certo ponto de sua vida não pode mais passar tantas horas em seu refúgio habitual. A vida real exigia sua presença.

Além disso, agora a sala estava abarrotada com os móveis que chegaram ao longo dos anos.

Centenas de gavetas que hora ou outra conseguiam abrir as trincas e atacar a mulher.

Ela não sabe exatamente como, mas os papéis passaram a ferir mais do que a pele já tão marcada da mulher. Começaram a se acumular na garganta junto ao choro contido, a infligir pequenos cortes no estômago que borbulhava ácido, a pressionar com violência a coluna que sustentava o peso do mundo.

...

Alice, no quarto do hospital, em seu momento mais vulnerável, teve seu ímpeto de coragem.

Visitou a sala, pegou um molho de chaves nunca tocado, e abriu a primeira gaveta da última cômoda. Com rapidez, antes que se espalhassem, ela os colocou em ordem, leu cada um deles, manchando-os com lágrimas que borravam e embaralhavam sua escrita.

Pegou no bolso uma caneta, apoiou o primeiro papel sobre o móvel, e reescreveu por cima do escrito.

Ela não podia mudar a forma como as coisas aconteceram, mas conseguia riscar palavras que não pertenciam mais aquele lugar, e encaixar nas bordas e cantos novas palavras que mudavam os significados daquelas frases dolorosas.

Ela ficou na sala por dias, meses, não se sabe ao certo. Mas finalmente terminou o conteúdo da primeira gaveta. Novamente embrulhou os papéis com carinho, e os colocou de volta onde pertenciam.

Mas dessa vez não trancou a gaveta. Agora eles eram livres para ocasionalmente fazer uma visita. Agora eles não eram mais motivo de dor, não tinham mais poder sobre ela, não podiam mais cortá-la.

Essa foi a primeira gaveta, ela passaria o resto de seus dias reorganizado e ressignificando todas as outras. Mas agora, finalmente, ela teria tempo de cicatrizar.



Helloisa Ramalho

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