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Black Mirror - Fabricação de subjetividades e Neurotecnologia em Black Museum



O episódio Black Museum, da série Black Mirror, conta a história de uma viajante chamada Nish que, devido a problemas com a bateria do carro, para em um posto de gasolina próximo a um museu. Mundialmente famoso, o Black Museum é propriedade de Rolo Haynes, neurocientista da área de Neurotecnologia. Ele trabalhava com tecnologia médica, na qual as pessoas se inscreviam para serem tratadas de graça em troca de se submeterem a experimentos tecnológicos ocasionais. No museu, Nish se depara com a sessão de artefatos criminológicos autênticos que possuíam histórias de experimentos tristes e doentios.

Esses experimentos objetivavam captar a forma humana de interpretar o mundo, já que todos foram uma tentativa tecnológica-científica de controle e manuseio da experiência subjetiva dos indivíduos, bem como da busca pela infinitude no finito. O episódio é contado por meio da história de 3 artefatos e experiências científicas, todos em busca da transferência de consciências.

O primeiro artefato objetivava a transferência de sensações físicas e prazerosas entre dois corpos, sem danos físicos. Rolo Haynes oferece o teste do experimento ao médico Peter Dawson, com o objetivo de facilitar a localização da dor e agilizar o diagnóstico dos pacientes. Desse modo, a dor real acontecia nos pacientes e, por meio das transferências de informações sensoriais, apenas a percepção dessa dor ocorria em Peter, que fazia o processo de interpretação e localização dessa dor. Essa capacidade de localização da dor se dá por meio do fenômeno da propriocepção que torna possível a localização espacial, formando uma imagem mental unificada das distintas partes do corpo como pertencentes ao todo de um indivíduo, na soma de suas partes e membros.

Nesse contexto, cabe a diferenciação entre sensação e percepção. A primeira é o processo pelo qual nossos receptores sensoriais e o sistema nervoso recebem e representam energias de estímulos do ambiente. A segunda é o processo de organização e interpretação das informações sensoriais, habilitando-nos a reconhecer objetos e eventos significativos conscientemente. São eventos que se complementam nos quais as sensações precisam ser organizadas pelo intelecto.

Na trama, devido a um trágico acidente em que um paciente morreu durante o uso do equipamento, Dr. Dawson teve o implante danificado por receber todos os impulsos da experiência da morte de outra pessoa, sem morrer de fato. Como consequência desse acontecimento, ele passou a sentir prazer com as dores dos pacientes durante os experimentos, buscando incessantemente por sensações mais fortes e mais invasivas. Por conta do seu vício na dor, o médico teve que ser afastado do trabalho e, em seus momentos sozinhos, passou a causar a si mesmo a dor em mutilações constantes.

Ainda assim, faltava uma coisa para completar o prazer que ele sentira anteriormente com as sensações dos pacientes que chegavam ao hospital: o medo. Equivalente a dor, o medo também funciona como medida de sobrevivência, pois quando sentimos medo, uma estrutura do nosso cérebro, a amígdala, fica alerta e aguça nossos sentidos, preparando o corpo para uma situação de fuga. Assim, Dr. Dawson passou a buscar por atos homicidas para sentir essa mescla de medo, dor e morte.

O segundo experimento tratou-se de uma transferência digital de consciência. A cobaia foi uma família cuja esposa, Carrie, entrou em coma após um acidente, deixando seu marido, Jack, com seu filho pequeno. No entanto, mesmo após anos do acidente, a família optou por continuar se relacionando com Carrie em estado vegetativo. Rolo estimula essa esperança de um retorno à vida do passado e o casal aceita o experimento.

Assim, a consciência de Carrie é transferida para a de seu companheiro. De início, a experiência ocorreu tranquilamente, beneficiando ambas as partes e proporcionando muita felicidade aos dois, por permitir a comunicação entre a família e a possibilidade de Carrie estar ativa no mundo novamente. Dito isso, o filme lança um questionamento aos telespectadores: “Quanto tempo a felicidade pode durar, realisticamente?".

A felicidade, de acordo com a pesquisa realizada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é uma experiência que pode ser percebida de três formas diferentes: como prazer ou gratificação, como personificação de forças e virtudes, e como senso de sentido e propósito na vida. Segundo o estudo, em sua maioria, a felicidade está associada às relações com a família e os amigos, ao lazer, às satisfações de necessidades básicas e desejos, bem como à autopercepção.

No filme, esse estado de felicidade decorreu bem até começarem os conflitos das subjetividades, do controle, dos gostos e formas de se comportar diferentemente entre Carrie e Jack. Se já há dificuldades em brigas nas quais duas pessoas podem se distanciar fisicamente, com as diferentes consciências e pensamentos dentro de um único indivíduo, a situação foi agravada pela impossibilidade do distanciamento. A falta de privacidade dele e a ausência de poder de ação dela confundiam não apenas os dois como o filho do casal.

Se a felicidade também pode ser vista como um processo de avaliação ampla de si e das condições da própria vida, o que envolve boas relações interpessoais e o desenvolvimento do autoconceito (conceito de si); no episódio, embora a atitude visasse a felicidade pela possibilidade de retorno do laço familiar perdido após o acidente, eles perdem o reconhecimento de si e a autopercepção, pois passam a dividir o mesmo corpo. Devido a isso, Rolo Haynes oferece uma opção de controle a Jack, desligar ou emudecer Carrie ocasionalmente, algo que se torna recorrente. Com o decorrer do teste, o que antes era um ato de amor e empatia, tornou a vida de ambos uma tortura, trazendo a separação definitiva. A subjetividade de Carrie é, por fim, compactada em um urso de pelúcia.

O último caso se trata de uma recriação do primeiro artefato, porém aplicado com a finalidade de punição de um suposto assassino, Clayton Leigh. A princípio, a proposta de Rolo Haynes a ele foi a digitalização da sua consciência em caso de morte e, em troca, ele seria absolvido de seu crime ou seria garantida uma renda fixa para sua família por ele ter participado do experimento. Porém, após a sua morte, ele foi recriado em uma versão em holograma, servindo de atração para o museu que o punia com choques nos dias de visita, causando-lhe dores com sensações reais.

O sentimento de empatia, que corresponde ao poder da própria atividade cerebral de espelhar a dor do outro, aparenta ter sido substituído pelo desejo de punição e pela transformação de Clayton como objeto de consumo. Por isso é dito que a percepção da dor também varia de acordo com a situação social e com as tradições culturais. Preso eternamente naquele momento perpétuo de dor, Clayton não havia morrido, mas também não estava vivo. Após mobilizações sociais para acabar com esse ato desumano, o museu deixou de receber visitantes, exceto pelos psicopatas que iam exclusivamente apreciar o sofrimento de Clayton, já que para estes a percepção da dor do outro gerava prazer ao invés de repulsa ou empatia.

Desse modo, durante o decorrer do enredo foi possível analisar a multiplicidade de âmbitos em que um estímulo pode ser percebido, bem como dos fatores que permeiam esse processo. Exemplo cotidiano a respeito do nosso conjunto perceptivo é a solidificação de opiniões sobre um assunto consoante opiniões de terceiros considerados confiáveis, sem a análise prévia das informações de maneira ampla. Ou, até mesmo, o efeito da cultura sobre o gênero das profissões que causa estranhamento ao enxergar uma profissão supostamente feminina sendo executada por uma figura masculina. Black Museum permitiu compreender a percepção como uma característica tanto inata quanto aprendida que é alimentada pela sensação, pela cognição e pela emoção. Além da predisposição mental que nos leva a perceber uma coisa ao invés de outra, guiadas por ideias fixas influenciadas por nossas emoções, interferindo na interpretação do mundo. Logo, são as experiências, emoções, suposições e expectativas particulares que, por si só, proporcionam um conjunto perceptivo e uma predisposição mental única a cada indivíduo. O que singulariza cada modo de tradução e percepção de uma vivência.

Por Kemilly M. J.

Referências

Black Mirror (2019).

Sinestesia como condição para a linguagem: Uma conjectura.

Você é feliz? A autopercepção da felicidade em crianças.

MYERS.D.G. (2015). Psicologia. Rio de Janeiro: LTC.

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