Os artistas de todo o mundo que me perdoem, mas acredito que não há nada mais belo e artístico do que as marcas de sapatos que ficam eternizadas no cimento das calçadas. Sim, eu estou falando daquelas pisadelas acidentais no cimento fresco, aquelas marcas de pegadas que podemos encontrar no asfalto duro de todos os lugares do mundo. Existe coisa mais linda do que elas? Essas marcas são alvo de meu interesse e admiração há tempos. Mas só hoje eu decidi me debruçar sobre a metafísica delas para dedicar-lhes algumas palavras. Calma, ainda não ria de mim, eu me explicarei.
Hoje mesmo, a caminho do trabalho, eu me deparei com uma delas. Era uma tímida melissinha, de solado furadinho, legítima representante dos anos 80, de pés pequenininhos, de passos errantes que caminham em direção à porta de uma creche municipal e terminam em uma curiosa marca que denota que os pés deslizaram. Quando vi aquilo, imaginei que a garotinha havia escorregado no cimento fresco. Logo depois, me veio à cabeça a ideia de que a mãe, percebendo que a menina desfilava com suas melissinhas novas em cima do cimento, puxou-lhe e lhe aplicou um belo corretivo à moda dos anos 80. Depois, pensei que, talvez, a pequena viu a porta da escola e tentou escapar através de uma birra daquelas... e quando eu me dei conta, já havia montado toda uma narrativa com o estímulo daquelas pegadas. Aquelas marcas eram um livro aberto, de infinitas páginas e possibilidades, que ousavam brindar com histórias maravilhosas os olhos curiosos e sentimentais de quem por lá passasse. Sim, eu sei, muitos dirão: É feio! É feio, sim, mas é um livro. Sua beleza não se percebe com os olhos, mas com a imaginação. Como uma flor de asfalto, sua arte reside na capacidade de resistir ao tempo e às adversidades. Não importa qual caminho tenha seguido aquela menina - hoje já moça-, não importa em que ano aquela pisadela se deu, tal qual um livro aberto, aqueles passos no asfalto sempre conduzirão a um mundo inefavelmente infinito.
Os estimados poetas e poetisas que estão, neste momento, amarrando a cara e dizendo que as pegadas no asfalto são apenas prosa barata, não se preocupem: Elas também são poesia. Basta observar o chão do centro das cidades. Um desavisado cão enfia as patinhas no cimento fresco e logo desvia do desconforto; pombas se atrevem a manchar o centro da calçada recém-formada para pegar a pipoca que caiu do carrinho do pipoqueiro; o pipoqueiro, dono de botinas de segunda mão, deixa sua marca no cimento fresco que escorria na sarjeta; Impossível não sentir nessas marcas urbanas os ares e versos de uma tímida Tabacaria do século 21. Impossível não ver rimas em pegadas que, lado a lado, se encaixam tão bem, e caminham simultaneamente em um ritmo único. E a musicalidade deste caos tão poético fica à cargo das marcas de uma chuva persistente que cai das marquises das construções, dos toc-tocs dos saltos femininos que afundam inesperadamente no cimento, ou até mesmo dos lamentos tristes dos que economizam tanto para comprar sapatos novos para depois afundá-los no concreto. É uma arte tão evidente! Um eterno entrelaçar entre passos que estão e que estiveram. Somente um Esteves sem metafísica não a levaria a sério. Sim, é uma poética inexplicável, eu sei, como uma melodia aos olhos, e uma obra de arte aos ouvidos. Mas, sem dúvida, é um prato cheio ao coração.
Sei que, neste momento, os mais céticos e endurecidos refutarão meu sentimentalismo barato alegando que as pegadas não têm nada além de forma física. E que todas as considerações que fiz até aqui não passam de meros frutos de minha imaginação. Não. A beleza desta arte supera suas formas e seus possíveis sentidos. Esses passos no asfalto também são fato político, econômico e social. É possível notar a diferença entre a pisada firme e contínua de uma botina de bico de ferro tamanho 42 - o vulgo “sapatão” tão conhecido entre os operários - e a pisada de leve, acidental e incompleta de um fino sapato social masculino italiano. É possível refletir se aqueles pés ao redor do posto de saúde se curaram, ou se encontraram o remédio e o atendimento necessário quando por ali andaram. Impossível não notar que as marcas de botinas que pedreiros deixam nas calçadas de bairros nobres são a única lembrança que eles deixaram em tantas casas que construíram (e nenhuma delas lhes pertence!).E as marcas de chinelos de dedo e de pés descalços ao redor das lixeiras dos prédios nobres? O que elas nos dizem? E o que dizem o grande número de pisadas femininas ao redor de escolas e supermercados? Todos esses passos são como um museu a céu aberto. São uma evidência material incomparável para nos alertar que os passos que já demos no passado precisam ser diferentes dos passos que daremos no futuro.
Por fim, deixo aqui o maior motivo pelo qual eu considero as tais pegadas uma obra de arte: Tal como o poeta espanhol me ensinou, essas marcas deixam claro que, na vida, não há caminhos, o caminho se faz ao caminhar. Estes passos perdidos no asfalto sempre me ensinam que a vida não é uma rua pavimentada, de direções claras e solo firme. A vida, na verdade, é uma calçada cinzenta de cimento fresco e virgem, um caminho nada firme, interditado, e que não tem direção nenhuma. E o caminho de nossas vidas só se revela quando caminhamos, em diversos caminhares, enfiando o pé naquela massa cinza, inicialmente tendo os pés tragados e maculados, mas depois deixando marcas indeléveis e únicas que somente a arte é capaz de interpretar.
Amélia Greier
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