Ela não me escolheu.
Ela não me escolheu no dia que me conheceu, mesmo eu tendo sido muito bem recomendado.
Ela não me escolhe agora, por mais que eu seja brilhante e ela me encare por alguns segundos.
O pai dela deixa muito claro a sua decepção com isso, embora de forma discreta. Ele pergunta de mim com frequência.
Os tios, tias, avós e avôs e a mãe, claro, também falam de mim, de mim e dos outros. Lembrando de todas as vezes que ela recusou.
Toda a família se preocupa muito com ela, é natural.
Tia Maria teve três filhos, tia Rosa, dois meninos. Tia Tereza só é mãe de gente barbada. Mesmo a irmã do pai só tem o Pedrinho. Ela tem um irmão, mais velho.
Antes dela engatinhar pela casa, naquela família, todas as fraldas tinham sido sempre substituídas por cuequinhas. Com que emoção a mãe comprou a primeira calcinha! Rosa, com babadinhos.
Ela abre a gaveta e não me escolhe.
Eu não sou o presente de Natal, de aniversário ou de dia das crianças. Eu sou mais! Eu sou a surpresa fora de hora, a que mostra quanto o pai ama a sua princesinha...Ela não valoriza isso! Ela não ME valoriza.
Eu não vivo a vida que me foi destinada, nenhum anel de quilate como o meu deveria passar por esta humilhação.
Meu único consolo é que dois pares de brincos de pérola, três de ouro, duas correntinhas, uma gargantilha e outros dois anéis, um de rubi, são meus companheiros de claustro. E claro, tem os batons. Eu não invejo a vida dos batons.
Vejo luz, ela veio e deixou a gaveta aberta.
Ela se olha no espelho, ainda tem gotas nos cabelos escorridas pelos recentes seios nus. A toalha escoou ao chão.
Ela vem até a gaveta. A gargantilha ainda suspira, eu não tenho mais esperanças.
Pega um caderninho de folhas sem pauta, que é meu vizinho da direita, agarra o batom laranja e o marrom, deita na cama e faz um estranho desenho de tons terrosos e grossa textura.
Melissa Suárez
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