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Memória, esquecimento e emoções em Divertida Mente


Divertida Mente (1) é um filme que conta a história de Riley, uma menina de onze anos que está se mudando, junto com os pais, de Minnesota para San Francisco. A mudança de cidade não é a única pela qual Riley está passando. Dentro de seu cérebro, as emoções Alegria, Tristeza, Medo, Raiva e Nojinho tentam consertar a bagunça que está acontecendo depois que as memórias-base de Riley saíram da sala de controle. Este filme, ganhador do Oscar de melhor filme de animação, consegue abordar de forma lúdica e criativa alguns aspectos muito importantes para a formação de cada indivíduo: a memória e as emoções.

“Já olhou pra uma pessoa e pensou: o que passa na cabeça dela?”. Pensamentos, ideias, emoções, memórias e tantos outros aspectos estão a todo o momento sendo formados no cérebro. Ele tem uma capacidade enorme para o processamento de informações que são essenciais para o dia a dia de cada um. A memória, por sua vez, é um elemento indispensável para constituição do ser, ela é a habilidade de receber, guardar e posteriormente evocar essas informações que chegam até nós. Essa habilidade existe graças ao circuito de neurônios que é responsável pela retenção das informações, entretanto, não basta apenas que exista essa rede neural, é preciso também que os órgãos do sentido estejam em ação para captar do mundo todos esses estímulos.

Todos os sentidos são de extrema importância para que a experiência do ser humano com o mundo seja mais completa. Contudo, a visão se destaca, motivo pelo qual ela é considerada o sentido primordial. Os olhos são como uma câmera fotográfica que registra cada momento vivido e o cérebro é como um álbum ou mesmo um computador, que guarda os momentos registrados na forma de memórias. No momento em que abre os olhos pela primeira vez, ao nascer, Riley vê seus pais e registra sua primeira memória, que é levada para a sala de comando onde está a Alegria.

Os computadores costumam ter um limite de armazenamento e quando esse limite é atingido, costuma-se apagar alguns itens desnecessários ou que não são mais usados para gerar mais espaço. O cérebro, todavia, tem uma capacidade ilimitada para guardar as memórias. Apesar disso, lembrar-se de tudo pode ser prejudicial e trazer dificuldades para o cotidiano. É por esse motivo que, a exemplo do computador, muitas memórias, depois de um tempo, são esquecidas ou ‘deletadas’. O esquecimento é uma forma do cérebro se desfazer de informações que não são mais úteis ou necessárias. A capacidade de esquecer é mostrada em vários momentos do filme, dentre eles, quando Alegria e Tristeza se encontram com os metalúrgicos, que são responsáveis por levar as memórias desnecessárias para o “lixão das memórias”, ou seja, para o esquecimento.

Desde a infância, a memória de cada indivíduo começa a ser formada e é graças a ela que cada um tem a possibilidade de se desenvolver como sujeito. “[...] agora, com a evolução da memória, a criança demonstra já a sua condição de sujeito. [...] Há, pela primeira vez, um indício claro de sua personalidade em desenvolvimento.” (2). As lembranças ajudam a construir a personalidade, a “ideia de si mesmo” que cada um tem de si. Sem elas, o sujeito perderia suas referências internas e ficaria sem saber quem é, o que fazer e para onde ir, afinal as lembranças são como um guia e servem de base para as ações de cada um.

Conforme ressaltado, a memória é a base sobre a qual se apoia a vida de cada sujeito. Dessa forma, o nome dado para as memórias mais importantes de Riley não poderia ser melhor: “memórias-base”. Essas memórias, que eram cinco, moldam os aspectos da personalidade de Riley e cada uma forma uma ilha de suas características pessoais: a ilha do hockey, a ilha da bobeira, a ilha da família, a ilha da amizade e a ilha da honestidade. De acordo com a própria Alegria, “As ilhas de personalidade são o que fazem da Riley, a Riley.”.

A partir do momento em que as memórias-base saíram da sala de controle, iniciou-se um período de conflito e incerteza na vida da Riley. Ela não conseguia mais se entender ou se reconhecer como antes porque as suas memórias-base, formadoras de sua personalidade, já não estavam mais nos devidos locais e por isso ela passou a agir de forma diferente da qual já estava acostumada. Coisas que geralmente deixavam-na empolgada e alegre, agora a deixavam indiferente. Até mesmo sua habilidade como jogadora de hockey foi prejudicada. Essa transformação na forma de ser pode ser constatada na fala dos personagens Nojinho e Raiva: “A Riley tá tão esquisita. Por que ela tá esquisita?” “O quê você esperava? Rolou um apagão!”. Nesse contexto, pode-se fazer uma conexão com o efeito do mal de Alzheimer sobre as pessoas. O esquecimento causado por essa doença faz com que a pessoa afetada desconheça, em casos mais avançados, tanto a si mesma como aos outros. Em vista disso, muitas atividades do dia a dia, como hábitos de higiene, por exemplo, tornam-se grandes desafios. Esse desconhecimento e seus desdobramentos podem ser reconhecidos como o maior motivo de aflição e sofrimento para os portadores do mal e seus familiares.

Além disso, outros processos psicológicos também foram afetados com esse “apagão”. Riley passou a ter problemas não só com sua memória, mas também com sua atenção e percepção, por exemplo. Ela passou a ter dificuldade para se concentrar nas aulas e nos jogos de hockey, e sua experiência perceptiva com o mundo foi drasticamente alterada. Isso mostra que nenhum processo psicológico existe de maneira isolada, e sim de forma engajada. “No processo de memorização, por exemplo, há outras funções psicológicas envolvidas, como a motivação, a atenção, a percepção e o aprendizado.” (3).

De forma não menos importante, o filme também trata da relação entre memória e emoção. As memórias da Riley são coloridas e cada cor representa uma das emoções. Quando ela vive um momento triste, a memória fica azul, quando vive um momento alegre, a memória fica amarela e assim sucessivamente. Quando as memórias são esquecidas elas desbotam e ficam sem cor, sem vida. Sempre que Riley está em um determinado estado de ânimo, suas memórias remetem a outros acontecimentos que a deixaram nesse mesmo estado anteriormente. A explicação para isso é dada pelo efeito que o humor tem sobre as lembranças:

“Quando estamos felizes, lembramos de

acontecimentos felizes e, assim, vemos

o mundo como um lugar alegre, o que

ajuda a prolongar o estado alegre. Quando

deprimidos, lembramos de eventos tristes,

que obscurecem nossas interpretações dos

eventos atuais.” (4).

Em razão dessa persistência de humor, Alegria faz de tudo para que Riley não tenha muitas memórias tristes e muito menos uma memória-base triste. Ela acredita que a tristeza não é um sentimento bom e que por isso sempre trará coisas ruins para Riley. Entretanto a tristeza é um sentimento importante tanto para a formação do ser humano como também, por mais paradoxal que pareça ser, para que as outras emoções façam sentido. Alegria só percebe essa importância quando ela vê que em uma das memórias alegres da Riley houve um acontecimento triste que depois, de certa forma, possibilitou essa alegria.

Além de sofrer mudanças em sua personalidade, ao “perder” as memórias-base, Riley perde também sua capacidade de sentir, de ter sentimentos, como explica o Medo: “Os sentimentos da Riley já eram.” Isso mostra o quanto as memórias são envolvidas por uma carga emocional. Segundo Gordon Bower, em Myers (4), “Uma emoção é como uma biblioteca onde armazenamos registros da memória.”.

À luz dos acontecimentos de Divertida Mente, é possível abrir espaço para o debate sobre a implicância que a perda de memória, seja ela temporária ou permanente, tem na constituição das pessoas. Assim como Riley, que teve sua memória desorganizada temporariamente, muitas outras pessoas que por algum motivo têm seus cérebros danificados também passam pela experiência do esquecimento. Quando essa perda de memória é retrógrada, ou seja, os fatos anteriores ao dano cerebral são esquecidos, o indivíduo perde totalmente a noção de quem ele é e de sua história. É como se a partir daquele momento ele voltasse a ser um bebê que precisa reaprender sobre tudo.

Infelizmente, atualmente, as mídias sociais facilitam, de certa forma, o processo de esquecimento, tanto a nível individual como a nível histórico e político. A mídia faz o que for possível para defender os seus interesses e os da classe dominante, inclusive “apagar” da memória das pessoas determinados fatos que possam causar na população uma vontade de mudança que ameace a ordem vigente. A manipulação da memória é algo extremamente perigoso e que viola o direito que cada um tem sobre sua história e ainda mais, interfere na constituição de sujeito de cada um, na sua condição de ser: humano.


Por Beatriz Maria Santos Pessoa


Referências

(1) DIVERTIDA mente. Direção: Pete Docter. Estados Unidos: Disney, 2015. Disponível em: https://www.netflix.com/br/. Acesso em: 25 de jan. de 2020.

(2) Desenvolvimento da personalidade da criança: o papel da educação infantil.

(3) FARIA, N. C.; MOURÃO JÚNIOR, C. A. Memória. Psicologia: Reflexão e Crítica, Porto Alegre, v. 28, n. 4, p. 780-788, 2015.

(4) MYERS, A. D. Psicologia. 9. ed. Rio de Janeiro: LTC, 2012.

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