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NA ILHA DO MEDO – CONDIÇÃO DE SER E AUTOPERCEPÇÃO NA PSICOSE ALUCINATÓRIA

Atualizado: 5 de mai. de 2020


https://www.cafecomfilme.com.br/filmes/a-ilha-do-medo

Filmes de suspense possuem um forte apelo sobre mim. Há algo irresistível e atraente, no meu ponto de vista, intrínseco à possibilidade de acompanhar um enredo que provoca sensações primitivas como o medo durante um tempo controlado – somos jogados em uma situação extrema de insegurança e perseguição que pede de nosso raciocínio tiradas assertivas e rápidas para então, ao fim, retornarmos ao conforto de nosso lar, mais ou menos abalados pela experiência sem, no entanto, esquecermo-nos de que se trata de uma película distante do que de fato vivenciamos. Nesse sentido, defendo que A Ilha do Medo (1) consegue ser um dos melhores exemplares que permitem tais experiências.

O filme de 2010, dirigido por Martin Scorcese, possui um enredo misterioso e perturbador, visto que nos coloca diversas vezes frente a questionamentos acerca da moral e da sanidade de muitos personagens ao longo de toda a trama. Seu enredo gira no entorno de Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio) e seu parceiro Chuck Aule (Mark Ruffalo), investigadores chamados para solucionar o desaparecimento de uma interna do hospital psiquiátrico da Shutter Island (2). À medida que o tempo avança, no lugar de respostas, somos confrontados com segredos e mistérios crescentes – a mulher desaparecida é de alta periculosidade; assim como os demais internos do hospital, não há meios de transporte que permitam a saída da ilha; àqueles que chamaram os investigadores também inspiram pouca confiança. Teddy Daniels sente-se progressivamente sufocado. Perseguido. Desconfiado. E, pior: confrontado por seus próprios demônios.

Sem dúvidas, uma das razões pelas quais o filme obtém tanto sucesso quanto a seu objetivo é a possibilidade que nos oferta de experimentarmos a situação extrema a qual o protagonista está sujeito. Acompanhamos, junto a ele, os mistérios que se desenrolam no lugar – enxergamos através de seus olhos. Ou, em outras palavras, o acompanhamos na percepção quanto à dimensão do perigo no qual está envolvido.

Para tanto, cabe falar mais especificamente da percepção, objeto psicológico que particularmente me interessa por sua complexidade e particularidade. Myers (6) se mostra útil nesse ponto da articulação entre percepção e o filme quando diz que, assim como ver é crer, crer é ver – só que a segunda afirmação nos agrada menos, porque significa que o conteúdo presente em nossa mente pode alterar a maneira como observamos o mundo ao redor.

Interessa-me como, durante o processo de interpretar, as informações ganham um sentido que ultrapassa os dados sensoriais e pode até enviesá-los, torná-los algo totalmente novo. Entendo que a atividade perceptiva humana poderia ser comparada a um filtro interno que atua sobre os dados resultantes da vivência objetiva, subjetivando-a de maneiras próprias a cada sujeito, visto que esse filtro é composto por dados contextuais, históricos e sociais diversos. Tais condicionantes compõem o chamado conjunto perceptivo – “uma predisposição mental que influencia em grande medida o que percebemos” (6).

Na Psicologia Jurídica, esse fato é tão importante que motivou a criação de uma área chamada Psicologia do Testemunho, visto que as testemunhas apresentam um papel crucial em muitas investigações. Seus depoimentos não podem ser considerados fatos tais quais foram vivenciados. No entanto, porque a experiência humana é sempre mediada por esse filtro perceptivo que altera os dados, especialmente sob condições como, por exemplo, o estresse, já que motivação e emoções são dois aspectos que interferem na percepção humana (6).

Relacionada à percepção, existe também a temática da autopercepção, que se vincula também, por sua vez, à ideia de autoimagem e à qualidade de vida. Tais palavras me fazem pensar sobre a importância da autopercepção e da autoimagem para a qualidade de vida. Por meio do que já apontado em Coelho et al. (3) e Giacomoni, Souza e Hutz (5), a autopercepção é altamente subjetiva e é composta por diversos fatores, dentre eles o ambiente social.

O grande segredo do filme é revelado nos últimos trinta minutos, quando descobrimos que, movidos pelo desejo de oferecer uma última chance ao paciente Andrew Laeddis, a equipe de um hospital psiquiátrico americano resolveu deixá-lo viver a história de sua fantasia, segundo a qual um delegado federal é chamado para resolver um caso de desaparecimento, descobre segredos e se depara com seus próprios medos na ilha para a qual viaja – Teddy, portanto, é apenas uma versão que Andrew criou para si mesmo.

Na estratégia da equipe, enfoca-se a relação do protagonista com a própria fantasia (7); ao invés de reprimi-la, escolheram permitir que ele pudesse exprimi-la. Desejavam que, dessa forma, Andrew pudesse confrontar-se com as impossibilidades e incoerências de sua narrativa, para então aceitar sua real história de institucionalizado e progredir no tratamento. Não esperavam, porém, que a obstinação da mente de Laeddis em acreditar na própria fantasia o levasse a rumos perigosos e, no fim, impedisse-o de viver a realidade tal qual se apresentava. Para o protagonista, se perceber enquanto o paciente psiquiátrico e prisioneiro não permitiria que houvesse qualquer noção de bem-estar e satisfação própria. Tornaria sua vida um grande sofrimento, do qual seus mecanismos de defesa inconscientemente tentaram poupá-lo. Considero que as vicissitudes e impactos da autopercepção na qualidade de vida dos sujeitos faz do tema algo importante de ser investigado em diversas áreas.

A cena final é a mais emblemática de todo o filme, ela representa não um retrocesso de Andrew ao estado original, no qual se denominava Teddy Daniels, mas o mais próximo que conseguiu de demonstrar a aceitação idealizada pela equipe psiquiátrica: agora ciente de quem era, em conflito com a dor que sua experiência lhe trazia, Andrew preferiu não ter que carregar aquele peso pelo resto de seus dias. Isso fica claro na frase final, que consegue resumir toda a essência do filme em si – “o que é pior: viver como um monstro ou morrer como um homem bom?”.

Outro assunto importante que pode ser discutido é a psicose alucinatória, tratada por Freud (4) em um de seus artigos como a busca do sujeito por negar o evento traumático que desencadeou a insanidade. Isso foi observado na imersão de Andrew em sua fantasia e até indiretamente mencionado por outro personagem na cena em que ele diz notar no protagonista o trabalho intenso dos mecanismos de defesa. Segundo a teorização freudiana, na busca por protegê-lo do trauma vivido, sua psique suprimiu o acontecimento sem que para isso houvesse uma escolha consciente dele, visto que “o vínculo do alucinante com o mundo é sentido como pesado fardo (...) ele (...) não dá conta das interpretações cotidianas” (7). Mas o fenômeno traumático insistia em retornar na forma de fragmentos de memória e no sonho.

Após saber a verdade, é como se Andrew, agora de modo consciente, escolhesse continuar o mesmo processo de fuga: morrer como um homem bom, nesse caso, seria a escolha por continuar se auto percebendo dessa forma em detrimento de mudar toda a visão que tinha de si mesmo para uma mais cruel. Ele preferia voltar a se desvincular da realidade e suas consequências.

A alucinação, por sua vez, pôde ser observada no longa metragem durante vários momentos – quando viu e ouviu a voz da esposa e no encontro com Rachel Solando são dois exemplos. De acordo com Paim, em Santos (7), “o conteúdo das alucinações visuais é, em geral, desagradável e acompanha-se de um estado afetivo intensamente angustioso”, o que se observou no semblante do personagem durante as cenas mencionadas.

Foi interessante perceber o significado da decisão da equipe psiquiátrica. Enquanto a porção mais clássica dessa especialidade médica dava preferência ao tratamento puramente psicofarmacológico ou cirúrgico – concentrados, portanto, na dimensão biológica da doença – eles recorreram a uma última tentativa antes de submeter Andrew à lobotomia por reconhecerem “a significação existencial da experiência alucinatória” (7) e darem importância a ela, o que lembra o discurso de Heidegger e Freud, já que ambos iam além do reducionismo fisiológico.

É sob essa mesma ótica que Heidegger também fala, segundo Santos (7), sobre a experiência do sonho como uma relação entre sujeito e seu modo de estar-no-mundo que se repete durante a inconsciência. De acordo com o filósofo existencialista, o mundo no qual vivemos privilegia o ‘estar desperto’ por ser esse o estado no qual podemos modificar a realidade e “ser nele que permanecemos nós mesmos” (7), afirmação que é refutada no filme, à medida que enquanto desperto, Andrew não conseguia ter acesso a dados da experiência real e traumática que viveu, ou seja, estava impossibilitado de ser ele mesmo – um paciente psiquiátrico acusado de assassinato, enquanto no sonho, de maneiras implícitas, a verdade tentava se expor. A Psicanálise interpretaria esse fato à luz do poder que o inconsciente e seus conteúdos detêm sobre o sonho devido à perda da força do poder repressor consciente.

Enfim, creio que, além do enredo bem articulado e da boa execução de todos os envolvidos no projeto, grande parte do sucesso da película deve-se também à evidente imersão que seus idealizadores protagonizaram em temáticas psicológicas. Conseguir relacionar com profundidade tais discussões ao longa só tornam a experiência mais rica, visceral e poderosa.



Por Júlia de Carvalho


REFERÊNCIAS

(1) A ILHA do medo. Direção: Martin Scorsese. Produção: Martin Scorsese et al. Estados Unidos: Paramount Pictures, 2010.

(2) ILHA do Medo.

(3) Relação entre a autopercepção do estado de saúde e a automedicação entre estudantes universitários.

(4) FREUD, S.S. Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. Inglaterra: 1925 (1911).

(5) Você é feliz? A autopercepção da felicidade em crianças.

(6) MYERS, D.G. Sensação e percepção. In: MYERS, D.G. Psicologia. Rio de Janeiro: LTC, 2012. 9ª edição.

(7) Sonho e alucinações visuais: Propostas fenomenológicas para sua compreensão, interpretação e intervenção psicológica.

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