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Ouriço!...(cama de um só prego)




“Se o grão de trigo cair na terra e não morrer,

ficará só; se morrer, porém, dará muito fruto” (*)



Acidentalmente, Tanous pisara no ouriço que se alojara por entre as algas ao longo da areia da praia; um local onde o mar ainda se deixava rufar lentamente na maré baixa. Já sentado, sentindo a dor intensa num dos pés, e equilibrando-se fora do quebra-mar, Tanous tocava o local com a mão, apalpando os espinhos espalhados na sola do pé, em diferentes posições e estágios de perfuração. Alguns já ganhavam proporções verticais como quem buscasse novos caminhos e direções sob a pele... outros, ainda em diferentes níveis de penetração, ou mesmo quebrados, espetados em linha reta, deixando ver, todos eles, as pontas negra da haste/espinho... Aos olhos de Tanous, o conjunto formava um desenho estilizado, como um carimbo que imprimisse em branco e preto a própria forma arredondada do ouriço-do-mar, imponente, em todo o seu apogeu no habitat natural.

A areia naquela ponta de praia, refletia uma beleza ímpar, assim, era comum que os turistas fossem vítimas imediatas desses moluscos, que por força das marés e algumas correntes marinhas, se desprendiam das pedras e se jogavam ao ir e vir das ondas, até se alojarem estáticos nas algas... Ainda sentindo a dor, Tanous fazia com que as ondas batessem suavemente sobre o seu pé atingido. Aliviava. Para ser mais exato, Tanous percebia que aos poucos a dor sumia, como se os espinhos, eles próprios, se encarregassem de irrigar o local com um forte anestésico, fazendo com que, lentamente, toda a sola do seu pé direito passasse de um estágio de dor, desconforto e agonia, para uma etapa de alívio, deleite e euforia. Prazer puro. Sob suas mãos em forma de concha, agora, o ouriço-do-mar experimentava alguns apertos e toques, fazendo com que suas longas hastes pontiagudas, lentamente se posicionassem vivas, fortes, eretas, entreabrindo e fechando-se lateralmente. Sua defesa, por certo, que o impedira de ser esmagado sob os pés desavisados de Tanous, e agora, provavelmente agradecido, o ouriço se doava carinhosamente aos afagos daquelas mãos que o alisavam suavemente – ainda que sem saber que mãos eram essas – Ponderou Tanous, que decidiu experimentar: Por que não testar agora as pontas dos espinhos? A ponta da haste? Uma espécie de agulha finíssima e afiada. Era só se manter cuidadoso e deixar que o polegar, o dedão, o anular, ora um ora outro, se perfurassem calmamente. Antes, porém, com o ouriço entre as mãos, Tanous continuava a cercá-lo de cuidados, submergi-lo ao movimento da água, aqui e ali, lá e cá. Sob as grandes mãos em concha de Tanous, o ouriço-do-mar, como se compreendesse o aprisionamento amigável e prazeroso, deslocava-se tranquilo, alterando o metabolismo do seu veneno inerente aos espinhos móveis e duros, sobrepostos à carapaça do seu corpo negro e arredondado. Glândulas venenosas que pareciam levar Tanous à uma experiência estranhamente nova e curiosa. Algo lisérgico, talvez, ou de profunda descoberta, como quem pudesse dizer a si e aos outros, que ali, naquele instante, abria-se uma porta de percepção, transformando o seu mundo num espetáculo inusitado, profundo e vigoroso. Algo inerente aos videntes e visionários que a todo instante tivessem a seu dispor, a seu bel-prazer, estímulos conscientes e inconscientes, e dominá-los era só uma questão tempo... Uma experiência nova e derradeira, avaliou Tanous, completando para si mesmo, finalmente:

- Estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender... Tentando dar a alguém o que vivi...(**).

Sobre o corpo de Tanous surgia, de tempo em tempo, uma perfuração apropriada e sensível, como a de um lendário Faquir indiano, que sem qualquer manifestação de dor, se deixa ficar estirado numa cama de 4.000 pregos; e por mais que a explicação física nos informe que o peso do corpo humano, flexível, distribui-se, uniformemente, sobre as pontas metálicas, fazendo com que cada prego sustente uma porção do peso, ainda assim, estamos sempre a nos perguntar - por que razão essas hastes pontiagudas não ferem o Faquir?

Vinha, agora, para Tanous, essa imagem que a infância lhe reservara, quando em visita à Índia, meses antes de poder testemunhar o desaparecimento da sua própria família, atingida por estilhaços mortais na explosão de um carro-bomba, efeitos da guerra secular que atingira em cheio grande parte de seu país. Tanous, de olhos voltados para o ouriço-do-mar, supôs ainda, que na ocasião, ouvira também, em alto e bom som, de um dos indianos, o que lhe fora traduzido pelo pai, como “se algum dia quiseres ser um verdadeiro Faquir, vá com cuidado, comece a praticar numa cama com um só prego”.

Tanto tempo depois, trazido ao Brasil pelos tios que o criaram, Tanous sentenciaria uma resposta à infância indiana: se meu peso ultrapassa a 70 quilos, e se eu me apoiar num único prego, por certo não só sentirei dor, como também o prego irá me perfurar a pele, penetrando-me na carne!...

Sobre suas mãos em concha, o ouriço-do-mar deslocava-se, calmamente, como um refém esquecido sob as águas; os dedos de Tanous pressionavam as hastes/espinhos, forçando-os na própria perna, na barriga, no tórax... depois, mais um ponto, ali no braço, no antebraço, no dorso das mãos...Em cada local, os espinhos se deixavam sair como se fossem os traços desenhados de uma tatuagem, numa espécie de simbiose de seres-vivos...

Ali, agora, tudo parecia possível para Tanous. Tanto que depositara novamente o ouriço-do-mar na areia para pisá-lo com o pé esquerdo; e sem que necessitasse de força ou qualquer pressão, sentia, levemente, quando os espinhos soltavam-se da carapaça e se deslocavam em linha reta, perfurando a sola do seu pé, como se fossem setas de um dardo ou estiletes venenosos de uma zarabatana. As perfurações surgiam naturalmente, como se viessem de um habitante do século XVIII, que talvez como ele, Tanous, pudesse em seu imaginário trocar a própria existência, como num jogo de ganha-ganha. Ou quem sabe compartilhar a vida entre as espécies distintas. Sim, ali, naquele momento, isolado na areia da praia, Tanous, que buscava o seu destino turístico num dos paraísos tropicais do país, tentando reorganizar a sua vida, definir um novo rumo, vincular-se a uma direção qualquer, perguntando a si mesmo, o que mais se poderia pretender do homem, senão esse trânsito interregno absoluto? Para Tanous, a própria existência, tão cheia de perguntas, sucumbia diante dessa pequenina vida marinha, e convidava-o para viver essa possibilidade que se apresentava, tal qual uma tatuagem. Tatuagem viva, sim, não aquelas que até então rejeitara, com desenhos existenciais em formas e cores, parecendo uma nova camada para o corpo; a pele repleta de pigmentos e tons como a arte exótica de uma tribo... enfim, um grupo com as marcas da rebeldia, ou ainda, carregado de marginalidade ou estigma, que o imaginário coletivo transformava, a olhos vistos, em identidade corporal.

Ali, não! Com o ouriço-do-mar, Tanous sentia-se levado à troca de experiências, por certo, mais forte e mais intensa. Plena. Tanto que, ao ver as algas e arbustos, as folhas tenras, Tanous sentia-se tão liberto em si, como os braços de uma estrela-do-mar que, tal qual os ouriços, apresenta-se com minúsculos espinhos para manter o corpo limpo e capturar pequenas presas; Tanous, agora, experimentava as plantas marinhas que ali se dispunham espalhadas, tal como conchas e pequenos organismos, que sob suas mãos tornavam-se pastas prensadas, unidas num só corpo: esqueleto, calcário,folhas e espinhos... Ali, Tanous, como um echinosderma, corpo e carapaça, emitia sinais de espinhos tal qual um ouriço-do-mar, cujas extremidades em pedicelárias formam pequenas pinças, com as quais recolhem ínfimos seres-vivos sobre o seu corpo... como um ouriço, cujas glândulas exalam o veneno para a sua locomoção sob a água.... Ali, Tanous sentia todo o seu corpo como uma placa de mil furos. Sentia-se atravessado pela água do mar, percebendo sobre si, todos os canais de correnteza que o impulsionavam para a frente, para os lados, para cima e para baixo. Tudo a facilitar-lhe a musculatura, e dando a seus pés, os contornos de uma nadadeira em evolução, que o levavam a cortar e vencer as ondas, levemente, como se relaxassem e distendessem, e assim seguiam os seus pés-nadadeiras abrindo caminho por entre a imensidão das águas...

Esse movimento de distensão e recolhimento dos pés alterava o sentido de locomoção para Tanous, que agora, em vez de nadar, como aprendera, bastava que andasse, assim, naturalmente, como as estrelas-do-mar, como os ouriços-do-mar que nunca nadam, apenas andam e andam levados pelas correntes marinhas; ora visitando as areias e corais do fundo do mar, ora locomovendo-se por sobre as pedras à procura de alimentos; ou ainda, propagando suas cores variadas e reflexivas, fixando-se nas rochas à beira-mar, com seus braços finos e longos que os ajudam a deslocar-se com extrema naturalidade. A certa distância da praia, Tanous, como quem planasse suave à meia altura da água, deslanchava seu corpo de 70 quilos, não como um Faquir indiano ou como quem se tatuasse à moda da praia, porém, inteiro, ouriço, ouriço-do-mar!... Pontos negros oscilando sobre a água, com as hastes/espinhos sobre os pés, sobre as pernas, braços, tórax, costas e rosto... a carapaça toda, um ser pontiagudo, negro, em contornos, ganhando distância e profundidade na extensão do mar... mar adentro, seguindo em conformidade com as ondas, levado pelas correntes. Um ser molusco em busca da própria existência: ouriço-do-mar à procura de pedras para se instalar, como um feto, numa cama de um só prego!...



Celso Lopes


(*) Parábola Evangélica – João, 12, 24 –

(**) A Paixão Segundo G.H. – Clarice Lispector


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