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Subjetividades Publicizadas

Atualizado: 7 de jul. de 2020


Ilustração de Gabriela Ferreira (Instagram: @gbferr)


Retomando as elucubrações e continuando os fios da meada como se tivesse ido ali e voltado (a vida tem dessas intermitências), decidi escrever sobre a noção de subjetividade contemporânea em meio à globalização virtual em que estamos imersos. Não com a pretensão de dar conta de um tema com esta magnitude, mas de escolher alguns ângulos e fomentar algumas reflexões. Começo, assim, trazendo uma anedota cotidiana relacionada ao quiproquó.

Esbarrei um dia desses com uma conhecida de outros tempos, esquecidos completamente. A querida amiga, estranha e desconhecida, me cumprimenta efusiva, como se tivéssemos uma intimidade de sempre e como se no espaço entre nossa última conversa e aquele dia não tivesse transcorrido nenhuma intermitência. A BSFF (Best Stranger Friend Forever) me pergunta das minhas viagens, das minhas roupas e dos meus relacionamentos, numa conversa ininterrupta e abrupta, enquanto eu, olhando-a com a tela de fundo em modo paisagem, ouvindo e não ouvindo ao mesmo tempo, persisto, silenciosa e discretamente (assim penso), no processo de recuperação mnemônica de tentar reconhecê-la, atrapalhado pelo ruído externo.

Lembro-me, já muito tardiamente, de manter o sorriso receptivo, em tons amarelos de constrangimento, na falta de respostas ao questionário íntimo e invasivo, minha Best finalmente silencia e me olha estática, compreendendo a minha total falta de engajamento na conversa. Além de não saber lidar muito bem com pessoas efusivas e ainda que reconhecesse os conteúdos da conversa que ela me apresentava, não consegui acompanhar o ritmo daquela intimidade estranha, emergindo em meu campo de percepção, com alguém que eu nem lembrava o nome.

Pois bem, acontece que percebi, muito depois, algo que faz parte de todo esse contexto virtual e globalizado que nos move a pena. Best estava, ao me encontrar no meio da rua concreta, em sua posição subjetiva @, ou se conectando a partir de seu avatar subjetivo publicizado; enquanto eu, ultrapassadamente, funcionava em minha posição CPF na Wonderland (País das maravilhas) das pessoas físicas. Em minhas redes sociais sigo conectada (intimamente?) à minha Best, que não me apagou de seu campo subjetivo virtual. Aproveito o espaço para desculpar-me em nome de meu avatar (@carine) - o erro foi todo meu, cara amiga - naquele dia sai no modo off-line, esperando nas ruas apenas o sossego das realidades palpáveis e sensoriais. Mas afinal, quem precisa mais disso?

Enfim, passando da anedota às notas, vamos tentar pensar um pouco sobre o que seria essa tal subjetividade publicizada a que me refiro. Para isso me aproprio de um outro conceito, desenvolvido pelo psicanalista Luís Claudio Figueiredo e exposto aqui de forma sucinta e breve apenas como suporte à discussão. Trata-se da noção de subjetividade privatizada, segue a explicação do próprio autor:


Ter uma experiência de subjetividade privatizada

bem nítida é para nós muito fácil e natural: todos

sentem que parte de suas experiências é íntima, que

ninguém tem acesso a ela. É possível, por exemplo, ficar

um longo tempo pensando se vamos ou não fazer

uma coisa, quase decidir por uma e, no final, acabar

fazendo outra, sem que ninguém fique sabendo

de nada. Com frequência sentimos alegrias e tristezas

intensas e procuramos escondê-las. A possibilidade

de mantermos nossa privacidade é altamente valorizada

por nós e relacionada ao nosso desejo de sermos livres

para decidir nosso destino. A experiência da solidão, ansiada

ou temida, é também altamente expressiva daquilo

que acreditamos ser nossa individualidade. Ainda com

maior frequência temos a sensação de que aquilo

que estamos vivendo nunca foi vivido antes por

mais ninguém, de que a nossa vida é única, de que o que

sentimos e pensamos é totalmente original e quase incomunicável.

(Psicologia – Uma nova introdução, Luís Claudio M. Figueiredo

& Pedro Luiz Ribeiro de Santi, 2000).


Para situarmos temporalmente estes argumentos é importante destacar que estas reflexões, segundo o autor, foram desenvolvidas em meados de 1980. O livro do qual o trecho foi retirado teve sua primeira publicação em 1991 e foi seguido por várias edições posteriores, incluindo esta do ano 2000, a qual utilizo e referencio. É necessário também ressaltar que no próprio texto já se debate a noção de subjetividade privatizada como algo não natural ao ser humano e que precisou ser inventado em determinados contextos sociais onde se produziram demandas em torno de pensar e sentir de formas privatizadas.

Logo, ao circunscrever uma intermitência de aproximadamente 30 anos, não pretendo aqui contestar o conceito de subjetividade privatizada, este que embora siga sendo extremamente válido e pertinente, situa-se não de todo suficiente em nossos dias para dar conta das produções subjetivas que se apresentam em nossa timeline. E foi justamente no sentido de complementação e atualização que resolvi fazer este esforço de reflexão.

Sendo assim, sigamos...(é só o que nos resta hoje em dia?). Dentro do que estou chamando aqui de subjetividade publicizada podemos ainda pensar em uma experiência íntima e inacessível? Ainda é íntimo o que se encontra exposto (inteiramente ou quase) a uma legião de seguidores, como temos visto em inúmeras situações nas quais as vidas ordinárias ganharam status de reality show (Realidade à mostra? Será?). Podemos pensar em uma intimidade que se tornou completamente acessível ou na completa inexistência atualmente de intimidade? Nostalgias do privado e do privativo? Quem sabe? Talvez.

Num nível de transparência, quase anatômica, até os processos mentais, antes encenados nos pequenos palcos introspectivos, ganham holofotes em minúcias. A intermitência entre o pensamento que assoma e o fazer/não fazer, querer/não querer, decidir/não decidir, alcançar/desistir é não só detalhada ao outro que segue, como estes outros nos dizem o que, como e quando pensar, fazer ou agir. “Me faça uma pergunta! Retire-me do tédio de mim mesma/o e da possibilidade de introspecção, posso descobrir que sou oca/o”.

É nessa total entrega do que há de íntimo e privatizado que nos tornamos @avatares, subjetividades publicizadas. Privacidade, quem precisa mais disso? Concebemos uma nova produção subjetiva específica ao momento tecnológico e globalizado que nos sub-roga (escancaradamente e com nosso consentimento) os direitos à autonomia e à liberdade? Deixamos de existir para além da virtualidade? Se não sou um @avatar, estou virtualmente morta/o? Ou nem cheguei a nascer?

Até que ponto podemos esperar honestidade e sinceridade nessa terra de @avatares? Felizes em self-estima, na edição programada e atrativa de personas sempre gratas e plenas. A tristeza, também aparece aqui e ali, seria dar muito na cara omitir completamente as ambiguidades e ambivalências. Porém, para continuar mantendo o público satisfeito, criam-se cada vez mais códigos adesivos que mimetizam o que seria o verdadeiro sofrimento. Então se estou deprimida, basta um emoji, meme ou gif que fale tudo e nada ao mesmo tempo (Sintetiza minha dor e me mantem interessante!). O ódio, surpreendentemente ou não, tem seu sex appeal, em mundos virtuais é melhor ser um/a hater (odiador/odiento) que um emo. A tristeza, aparentemente, permanece como último reduto do privatizado inacessível (por enquanto e nem tanto assim!).

Que efeitos afetivos podemos esperar da subjetividade publicizada na subjetividade privatizada? Ainda podemos fazer esta separação? Chegaremos em um momento no qual funcionaremos, predominantemente, a partir de nossos avatares? Das experiências de introspecção, solidão produtiva, privacidade, autonomia e liberdade de decisão; passamos às experiências de publicização, aprisionamento, dependência, insegurança e incapacidade de ficar só. A solidão construtiva dá lugar à ilusão massificada de conexão permanente, estamos todos em #hiperlinks, afins, onde quer que estejamos, isolados no grande vácuo virtual que nos une.

O que restou de original e incomunicável? Até crimes dos mais hediondos são filmados e publicizados hoje em dia. E talvez o original seja baseado no nível de exposição que alguém alcança (Mostre-me tudo e seja o/a mais autêntico!). A saída para um retorno a nós mesmos seria o resgate das privacidades das pessoas físicas? Ou isso já virou uma ficção maior que os nossos eus avatares? Rendemo-nos completamente às @s e #s como botes salva-vidas num mar infinito e profuso que nos afoga? Deixo aos leitores a continuação destas reflexões. Este texto, como bem se vê, está mais preenchido de perguntas sem respostas que de soluções. Entre intermitências construtivas precisamos nos questionar sobre nossas alienações, sobre os espaços criativos e (por que, não?) virtuais. Aguardo os encontros em modos e modulações diversas e espero aproveitar tanto os holofotes como as vantagens de ser invisível.

@BSFF deixou um recado para você:


#tbt do nosso encontro @carine!

Você não muda, foi óóóótimo te ver amiga...




Carine Mendes (@carinevmendes)

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