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A Rainha do Milho

Atualizado: 1 de mai. de 2020


Milharal




CENA:

Há o som de uma sanfona. O velho Pão sem

Bico toca no meio de um grande milharal, que foi preparado para o aniversário de dezoito anos de Lindinha. Caixotes de feira compõem uma mesa, onde estão os quitutes da festa. Os convidados se divertem pelo espaço. A aniversariante veste uma saia de palhas de milho, acompanhada por um corselet de retalhos e uma coroa de pipoca. Ela faz uma pausa na sua dança para falar com sua mãe Leda e sua irmã Gessica.



LINDINHA


Mar repare... Repare mermo, mainha. O povo tudo dançando, tudo se divertindo.

DONA LEDA


Sua festa tá linda, minha fia.

GESSICA


Tá uma presepada, isso sim.

DONA LEDA


Fique na sua, Gessica. Num estrague a felicidade da sua irmã.

LINDINHA


Nada estraga minha felicidade hoje, mainha.

(Elevando a voz para o sanfoneiro)

Toque! Toque com gosto, meu tio. Hoje eu quero me acabar!

Ela volta a dançar.

GESSICA


Tem nem vergonha. Olha pra esse vestido, Lindinha.

Que marmota é essa? E onde já se viu um aniversário

no meio do milharal?

LINDINHA


É o aniversário da rainha do milho.

GESSICA


As palhas do sabugo nem precisa, né? Já é esse teu cabelo de pixaim.

DONA LEDA


Tu cala a tua boca, Gessica.

GESSICA


Só tô falando a verdade. É São João, por acaso? Num

sabia que março tinha virado junho. Palhaçada!

Amanhã vai tá todo mundo mangando da gente.

DONA LEDA


Mangando de quê?

GESSICA


Num basta depender desse milharal, ainda tem que

inventar moda pra fazer festa de aniversário?

LINDINHA


Oxê, pois então... Graças a Deus, a esse milharal

que põe comida na tua boca e a minha imaginação,

que tô tendo uma festa pra ninguém botar defeito.

Tem até música ao vivo!

GESSICA


O tio Pão sem Bico?! E isso é músico, é?

LINDINHA


E dos melhores...

Ela rodopia mais forte pelo milharal.

GESSICA


Mar menina!

Lindinha para de dançar.

LINDINHA


É meu aniversário de dezoito anos, minha irmã. Num

tem dia mar feliz pra mim. Você, mainha, painho,

todo mundo é prova do quanto esperei, do quanto

aperreei pra esse dia chegar. É uma noite especial.

É meu dia de rainha!

GESSICA


Rainha por quê? O que tem de especial no

aniversário de dezoito anos? Num tô entendendo essa

tua afobação.

LINDINHA


Espere! Espere!

GESSICA


Tá é querendo botar as asinhas de fora, que eu sei.

DONA LEDA


E aquele fio da gota serena do seu pai que num

chega! Tu foi mermo atrás dele, Gessica?


GESSICA


Oxê, de novo essa história? Já num disse que sim.

DONA LEDA


Deve tá bem enchendo a cara.

LINDINHA


Painho tem que vim logo, meia noite ele tem que tá aqui.

GESSICA


Que aporrinhação essa história de meia noite, menina!

LINDINHA


Meia noite é que é meu aniversário. Cadê o painho?

Genésio chega.

GENÉSIO


Mar que coisa mar linda de painho!

Lindinha corre para abraçá-lo.

LINDINHA


Painho!

GENÉSIO


Minha fia, como cê tá linda!

DONA LEDA


Onde tu tava esse tempo todo que num tava no

aniversário da tua fia, Genésio?

GENÉSIO


Omi... Vai começar com os teus aperreios, é? Já num

tô aqui?

LINDINHA


Isso. Ele já tá aqui, mainha. Ele chegou. Dance

comigo um forró, painho. Chegue! Dance comigo.

Os dois dançam pelo milharal.

DONA LEDA


Nunca vi tua irmã tão feliz como tá hoje.

GESSICA


Tá é doida.

DONA LEDA


Tá feliz. Só tem tamanho. Tá fazendo dezoito anos,

mar num passa de uma menina.

Lindinha e Genésio dançam felizes pelo

milharal. Os convidados vão aos poucos

construindo uma roda em volta dos dois.

Assistem a dança de pai e filha por alguns

instantes.

GENÉSIO


Minha menina cresceu, virou moça.

LINDINHA


Mulher! Sou de maior, painho.

Lindinha para de dançar.

LINDINHA


Já tá quase na hora...

Lindinha vai até a mesa e começa a

distribuir bebidas.

LINDINHA


Que horas que tá marcando no relógio, Gessica?

GESSICA


Ainda falta, menina. Que aperreio!

LINDINHA


Bora brindar. Chegue! Quero que todo mundo brinde

por esse dia. Brinde por uma nova fase na minha

vida. Hoje é o meu aniversário de dezoito anos. É o

meu dia de rainha!

GENÉSIO


Um brinde a minha princesa!

LINDINHA


Rainha, painho! Rainha!

DONA LEDA


Um brinde a rainha! A rainha!

Todos brindam.


LINDINHA


Agora todo mundo olhando pra lá.

Ela aponta para uma das direções

do milharal.

LINDINHA


É por ali que vai chegar o meu príncipe. Quer

dizer, príncipe mar não, ele agora já deve ter

virado rei.

DONA LEDA


Essa menina é cheia de invenção.

GESSICA


Num tô dizendo.

LINDINHA


Tio Pão sem Bico, continue tocando. Continue. Mar

agora toque uma coisa mar melosa, mar romântica.

GESSICA


Abestalhada.

Pão sem Bico toca uma música mais leve.

LINDINHA


Isso! Essa tá boa, meu tio.

DONA LEDA


Que é que tu tá arrumando, menina?

LINDINHA


Calma, mainha. Repare. Escute minha história.

Os convidados se aproximam um pouco mais.

LINDINHA


Mainha, painho, minha irmã Gessica e todos meus

queridos convidados... Eu serei rainha. É isso

mermo. Rainha!

GESSICA


Pronto...

LINDINHA


Há quatro anos, nesse milharal, nesse mermo

cantinho, uma coisa linda aconteceu na minha vida.

Pão sem Bico intensifica a música romântica.

LINDINHA


O que pode ter de mar lindo nessa vida se não o

amor?

Dona LEDA


Oxê! Oxê!

LINDINHA


Foi aqui mesmo, debaixo de um céu bem laranjinha,

que eu conheci o meu príncipe. Já tem quatro anos

que aconteceu, mar lembro tudinho, como se fosse

hoje. Eu tinha terminado o meu serviço, mas quis

ficar um bocadinho deitada, descansando, olhando

pro céu. Sempre tive essa mania besta de ficar

olhando pro céu, catando desenho nas nuvens. Todo

mundo foi simbora e eu fiquei na preguiça, achando

monstros, botas, bichos e um monte de figuras lá em

cima. Distraída que só eu, só me dei conta do

príncipe quando ele tava bem pertinho. Veio daquela

direção. Ô bicho lindo! Mar era tão lindo, tão

lindo, que eu ficava descabreada só de olhar.

GENÉSIO


Que é que tu tá falando, Lindinha? Num tô gostando

do rumo dessa conversa.

LINDINHA


Num fique aperreado não, painho, porque é sério. É

amor, amor à primeira vista. Ele ia se aproximando,

meu coração disparando. Se aproximando, meu coração

disparando... Oxê, num sei como não tive um troço.

GESSICA


Tô é doida ou perdi alguma coisa? Que história é

essa, Lindinha? De uma hora pra outra. Esse cabra

surgiu de onde, que eu não sei?

LINDINHA


Dos meus sonhos, minha irmã. Foi Deus quem mandou.

Eu me encantei com ele, mar ele também se encantou

com a minha pessoa. Sentou do meu lado, a gente

conversou até escurecer. Sabe o que é ter frio na

barriga só com a presença de alguém? Lembro

tudinho. Lembro dos pelos ralinhos no braço dele,

dos olhos de mel, do quanto ele era cheiroso...

Lembro do meu ombro quase colando no dele... Ave

Maria! Essa sensação de quase tocar é que me dava

um desarranjo no estômago. Conversamos tanto, sobre

quase tudo. Ele me disse que era de família rica,

de um reino lá pras bandas de Coqueiro Seco.

GESSICA


Onde que tem reino em Coqueiro Seco, Lindinha?

Deixa de ser abestalhada.

LINDINHA


Mar menina... O dele. Deve ser pra uns lados que tu

num conhece, né Gessica? É um castelo. Tem que ser

escondido mesmo, por causa dos mal elementos. Mar

num se preocupem não, porque ele não se importa deu

ser uma menina pobre, que colhe milho pra viver.

Não. Ele é simples, humilde. Num liga pra essas

coisas. Eu senti que ele tava sendo verdadeiro.

Nossa... Foi um momento tão mágico, tão profundo. A

gente sabe, a gente sente. Quando o amor bate na

porta, a gente sabe direitinho.

GENÉSIO


(Num rompante de explosão)


Omi! Para com essa latumia aí, Pão sem Bico!

Pão sem Bico para de tocar.

GENÉSIO


Tô ficando é muito mole. Tu se enrabichou por esses

cabras safados daqui, Lindinha? Foi isso mesmo?

LINDINHA


Fique calmo, painho. Foi um príncipe. Um príncipe

lá de Coqueiro Seco. O senhor ainda não entendeu

que é amor?

GENÉSIO


Amor o que, menina?

LINDINHA


Amor sim. Daqueles que tá no nosso destino, que o

coração pula pra fora, que dá sentido a vida, que

deixa a gente feliz que nem quando come canjica.

Igual ao do senhor mais a mainha. Amor. Amor de

verdade. E foi por esse amor...


(Hesita)


Foi por esse amor que eu me entreguei pra ele.

GENÉSIO


É o que?

GESSICA


Danou-se!

Genésio parte agressivo em direção de

Lindinha, mas é impedido por Dona Leda.

LINDINHA


Espia... Escute, painho! Foi tão lindo! Não do

jeito que o senhor tá pensando. Não. Foi pra coroar

o nosso amor, como um compromisso, um voto.

Escute... O príncipe passou muitos anos longe de

casa. Tava justamente naquele momento, naquela

tarde laranjinha voltando pro reino de Coqueiro

Seco. Ele ia cuidar do pai dele, bichinho, que tava

doente. Mas ele me prometeu, jurou, que depois de

quatro anos, quando eu fosse de maior e ele rei,

vinha me buscar pra gente viver pra sempre o nosso

amor.

Lindinha percorre o milharal, saudosa.

LINDINHA


Naquela noite, nesse milharal, nesse mesmo cantinho

onde a gente tá reunido nessa festa porreta, eu

sabia que minha vida tinha encontrado um novo

sentido. Eu tinha encontrado minha cara-metade, a

tampa da minha panela, o milho da minha pipoca, o

meu príncipe, o meu amor.

DONA LEDA


Tu foi enganada, menina besta. Preste atenção!

LINDINHA


Num fui não, mainha. Ele vem me buscar. Confie!

Meia noite, no meu aniversário de dezoito anos. Foi

assim que a gente combinou. Eu só tinha que

esperar. Esperar todos esses anos. Esperar o meu

aniversário de dezoito anos. E eu esperei. Esperei

meu príncipe, que com certeza já virou rei. Esperei

a minha maioridade. Contava os dias, as horas, os

minutos, tudo. E chegou! Chegou! Foi aqui mesmo que

ele disse que vinha me buscar. A senhora entende

agora porquê eu quis fazer minha festa aqui,

mainha? Pra esperar o meu príncipe me buscar, o meu

rei.


(Notando que a música parou)


Volte a tocar, meu tio! Toque sua sanfona bem

lentinha. Romântica. No embalo dos apaixonados.

Pão sem Bico volta a tocar.

LINDINHA


Eu não quero tristeza. Eu vou pra longe, vou morar

num castelo longe desse milharal, mas vou voltar

sempre. Serei rainha! Vou poder dar uma vida melhor

pra todo mundo. Avia! Avia, meu tio! Toque com

gosto, porque é noite de festa.

GENÉSIO


Posso saber o nome desse cabra, Lindinha? Qual o

nome desse bexiguento?!!

LINDINHA


O nome...? Eu não sei, painho. Era o príncipe. Já

já ele tá chegando, o senhor vai ver.

GESSICA


Essa peste era o espantalho, minha gente. Lindinha

perdeu a mocidade pro espantalho.

LINDINHA


Não era espantalho não, era meu príncipe, de carne

e osso. Eu num tô mentindo, num tô avariando, não

foi ilusão. Foi verdade. Painho, eu não me

arrependo. E não fique triste, mainha. Fiz o que

fiz com a força do meu coração. A senhora não diz

que quando a gente faz as coisas com o coração, a

gente faz certo? Mesmo que destrambelhado, mas tá

certo? Pois então... Esperei muito por este dia. O

tempo passou devagarinho, quase parando, mas

passou. Ave Maria! É tanta ansiedade que num cabe

em mim. Ele já deve tá chegando. Por ali... O meu

príncipe tá chegando. Do jeito que a gente

combinou.

Neste instante, ouve-se o som de um corvo.

Pão sem Bico para de tocar.

LINDINHA


Oxê... E esse bexiguento desse corvo agora?

Querendo acabar com a minha festa, é? Mar menino!

Vai simbora, meu filho! Vai pra outras bandas,

porque aqui não tem mal agouro não.


(Lembrando)


Eita... Já tá na hora, meu tio. Toca aí! Toque os

parabéns, que já tá na hora do meu aniversário. Tá

na hora do meu amor chegar.

Pão sem Bico começa a tocar os parabéns. Os

convidados, prontamente, cantam em plenos

pulmões. Enquanto Dona Leda senta no chão

do milharal e chora, Genésio vai saindo

pelo mesmo caminho que chegou. Gessica ri.

E Lindinha olha fixamente em outra direção.

Ela espera. Ansiosamente, ela espera o seu

príncipe chegar.



Por Max Mendes


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