Fonte da imagem: https://pt.freeimages.com/photo/cornfield-in-the-evening-1246698
CENA:
Há o som de uma sanfona. O velho Pão sem
Bico toca no meio de um grande milharal, que foi preparado para o aniversário de dezoito anos de Lindinha. Caixotes de feira compõem uma mesa, onde estão os quitutes da festa. Os convidados se divertem pelo espaço. A aniversariante veste uma saia de palhas de milho, acompanhada por um corselet de retalhos e uma coroa de pipoca. Ela faz uma pausa na sua dança para falar com sua mãe Leda e sua irmã Gessica.
LINDINHA
Mar repare... Repare mermo, mainha. O povo tudo dançando, tudo se divertindo.
DONA LEDA
Sua festa tá linda, minha fia.
GESSICA
Tá uma presepada, isso sim.
DONA LEDA
Fique na sua, Gessica. Num estrague a felicidade da sua irmã.
LINDINHA
Nada estraga minha felicidade hoje, mainha.
(Elevando a voz para o sanfoneiro)
Toque! Toque com gosto, meu tio. Hoje eu quero me acabar!
Ela volta a dançar.
GESSICA
Tem nem vergonha. Olha pra esse vestido, Lindinha.
Que marmota é essa? E onde já se viu um aniversário
no meio do milharal?
LINDINHA
É o aniversário da rainha do milho.
GESSICA
As palhas do sabugo nem precisa, né? Já é esse teu cabelo de pixaim.
DONA LEDA
Tu cala a tua boca, Gessica.
GESSICA
Só tô falando a verdade. É São João, por acaso? Num
sabia que março tinha virado junho. Palhaçada!
Amanhã vai tá todo mundo mangando da gente.
DONA LEDA
Mangando de quê?
GESSICA
Num basta depender desse milharal, ainda tem que
inventar moda pra fazer festa de aniversário?
LINDINHA
Oxê, pois então... Graças a Deus, a esse milharal
que põe comida na tua boca e a minha imaginação,
que tô tendo uma festa pra ninguém botar defeito.
Tem até música ao vivo!
GESSICA
O tio Pão sem Bico?! E isso é músico, é?
LINDINHA
E dos melhores...
Ela rodopia mais forte pelo milharal.
GESSICA
Mar menina!
Lindinha para de dançar.
LINDINHA
É meu aniversário de dezoito anos, minha irmã. Num
tem dia mar feliz pra mim. Você, mainha, painho,
todo mundo é prova do quanto esperei, do quanto
aperreei pra esse dia chegar. É uma noite especial.
É meu dia de rainha!
GESSICA
Rainha por quê? O que tem de especial no
aniversário de dezoito anos? Num tô entendendo essa
tua afobação.
LINDINHA
Espere! Espere!
GESSICA
Tá é querendo botar as asinhas de fora, que eu sei.
DONA LEDA
E aquele fio da gota serena do seu pai que num
chega! Tu foi mermo atrás dele, Gessica?
GESSICA
Oxê, de novo essa história? Já num disse que sim.
DONA LEDA
Deve tá bem enchendo a cara.
LINDINHA
Painho tem que vim logo, meia noite ele tem que tá aqui.
GESSICA
Que aporrinhação essa história de meia noite, menina!
LINDINHA
Meia noite é que é meu aniversário. Cadê o painho?
Genésio chega.
GENÉSIO
Mar que coisa mar linda de painho!
Lindinha corre para abraçá-lo.
LINDINHA
Painho!
GENÉSIO
Minha fia, como cê tá linda!
DONA LEDA
Onde tu tava esse tempo todo que num tava no
aniversário da tua fia, Genésio?
GENÉSIO
Omi... Vai começar com os teus aperreios, é? Já num
tô aqui?
LINDINHA
Isso. Ele já tá aqui, mainha. Ele chegou. Dance
comigo um forró, painho. Chegue! Dance comigo.
Os dois dançam pelo milharal.
DONA LEDA
Nunca vi tua irmã tão feliz como tá hoje.
GESSICA
Tá é doida.
DONA LEDA
Tá feliz. Só tem tamanho. Tá fazendo dezoito anos,
mar num passa de uma menina.
Lindinha e Genésio dançam felizes pelo
milharal. Os convidados vão aos poucos
construindo uma roda em volta dos dois.
Assistem a dança de pai e filha por alguns
instantes.
GENÉSIO
Minha menina cresceu, virou moça.
LINDINHA
Mulher! Sou de maior, painho.
Lindinha para de dançar.
LINDINHA
Já tá quase na hora...
Lindinha vai até a mesa e começa a
distribuir bebidas.
LINDINHA
Que horas que tá marcando no relógio, Gessica?
GESSICA
Ainda falta, menina. Que aperreio!
LINDINHA
Bora brindar. Chegue! Quero que todo mundo brinde
por esse dia. Brinde por uma nova fase na minha
vida. Hoje é o meu aniversário de dezoito anos. É o
meu dia de rainha!
GENÉSIO
Um brinde a minha princesa!
LINDINHA
Rainha, painho! Rainha!
DONA LEDA
Um brinde a rainha! A rainha!
Todos brindam.
LINDINHA
Agora todo mundo olhando pra lá.
Ela aponta para uma das direções
do milharal.
LINDINHA
É por ali que vai chegar o meu príncipe. Quer
dizer, príncipe mar não, ele agora já deve ter
virado rei.
DONA LEDA
Essa menina é cheia de invenção.
GESSICA
Num tô dizendo.
LINDINHA
Tio Pão sem Bico, continue tocando. Continue. Mar
agora toque uma coisa mar melosa, mar romântica.
GESSICA
Abestalhada.
Pão sem Bico toca uma música mais leve.
LINDINHA
Isso! Essa tá boa, meu tio.
DONA LEDA
Que é que tu tá arrumando, menina?
LINDINHA
Calma, mainha. Repare. Escute minha história.
Os convidados se aproximam um pouco mais.
LINDINHA
Mainha, painho, minha irmã Gessica e todos meus
queridos convidados... Eu serei rainha. É isso
mermo. Rainha!
GESSICA
Pronto...
LINDINHA
Há quatro anos, nesse milharal, nesse mermo
cantinho, uma coisa linda aconteceu na minha vida.
Pão sem Bico intensifica a música romântica.
LINDINHA
O que pode ter de mar lindo nessa vida se não o
amor?
Dona LEDA
Oxê! Oxê!
LINDINHA
Foi aqui mesmo, debaixo de um céu bem laranjinha,
que eu conheci o meu príncipe. Já tem quatro anos
que aconteceu, mar lembro tudinho, como se fosse
hoje. Eu tinha terminado o meu serviço, mas quis
ficar um bocadinho deitada, descansando, olhando
pro céu. Sempre tive essa mania besta de ficar
olhando pro céu, catando desenho nas nuvens. Todo
mundo foi simbora e eu fiquei na preguiça, achando
monstros, botas, bichos e um monte de figuras lá em
cima. Distraída que só eu, só me dei conta do
príncipe quando ele tava bem pertinho. Veio daquela
direção. Ô bicho lindo! Mar era tão lindo, tão
lindo, que eu ficava descabreada só de olhar.
GENÉSIO
Que é que tu tá falando, Lindinha? Num tô gostando
do rumo dessa conversa.
LINDINHA
Num fique aperreado não, painho, porque é sério. É
amor, amor à primeira vista. Ele ia se aproximando,
meu coração disparando. Se aproximando, meu coração
disparando... Oxê, num sei como não tive um troço.
GESSICA
Tô é doida ou perdi alguma coisa? Que história é
essa, Lindinha? De uma hora pra outra. Esse cabra
surgiu de onde, que eu não sei?
LINDINHA
Dos meus sonhos, minha irmã. Foi Deus quem mandou.
Eu me encantei com ele, mar ele também se encantou
com a minha pessoa. Sentou do meu lado, a gente
conversou até escurecer. Sabe o que é ter frio na
barriga só com a presença de alguém? Lembro
tudinho. Lembro dos pelos ralinhos no braço dele,
dos olhos de mel, do quanto ele era cheiroso...
Lembro do meu ombro quase colando no dele... Ave
Maria! Essa sensação de quase tocar é que me dava
um desarranjo no estômago. Conversamos tanto, sobre
quase tudo. Ele me disse que era de família rica,
de um reino lá pras bandas de Coqueiro Seco.
GESSICA
Onde que tem reino em Coqueiro Seco, Lindinha?
Deixa de ser abestalhada.
LINDINHA
Mar menina... O dele. Deve ser pra uns lados que tu
num conhece, né Gessica? É um castelo. Tem que ser
escondido mesmo, por causa dos mal elementos. Mar
num se preocupem não, porque ele não se importa deu
ser uma menina pobre, que colhe milho pra viver.
Não. Ele é simples, humilde. Num liga pra essas
coisas. Eu senti que ele tava sendo verdadeiro.
Nossa... Foi um momento tão mágico, tão profundo. A
gente sabe, a gente sente. Quando o amor bate na
porta, a gente sabe direitinho.
GENÉSIO
(Num rompante de explosão)
Omi! Para com essa latumia aí, Pão sem Bico!
Pão sem Bico para de tocar.
GENÉSIO
Tô ficando é muito mole. Tu se enrabichou por esses
cabras safados daqui, Lindinha? Foi isso mesmo?
LINDINHA
Fique calmo, painho. Foi um príncipe. Um príncipe
lá de Coqueiro Seco. O senhor ainda não entendeu
que é amor?
GENÉSIO
Amor o que, menina?
LINDINHA
Amor sim. Daqueles que tá no nosso destino, que o
coração pula pra fora, que dá sentido a vida, que
deixa a gente feliz que nem quando come canjica.
Igual ao do senhor mais a mainha. Amor. Amor de
verdade. E foi por esse amor...
(Hesita)
Foi por esse amor que eu me entreguei pra ele.
GENÉSIO
É o que?
GESSICA
Danou-se!
Genésio parte agressivo em direção de
Lindinha, mas é impedido por Dona Leda.
LINDINHA
Espia... Escute, painho! Foi tão lindo! Não do
jeito que o senhor tá pensando. Não. Foi pra coroar
o nosso amor, como um compromisso, um voto.
Escute... O príncipe passou muitos anos longe de
casa. Tava justamente naquele momento, naquela
tarde laranjinha voltando pro reino de Coqueiro
Seco. Ele ia cuidar do pai dele, bichinho, que tava
doente. Mas ele me prometeu, jurou, que depois de
quatro anos, quando eu fosse de maior e ele rei,
vinha me buscar pra gente viver pra sempre o nosso
amor.
Lindinha percorre o milharal, saudosa.
LINDINHA
Naquela noite, nesse milharal, nesse mesmo cantinho
onde a gente tá reunido nessa festa porreta, eu
sabia que minha vida tinha encontrado um novo
sentido. Eu tinha encontrado minha cara-metade, a
tampa da minha panela, o milho da minha pipoca, o
meu príncipe, o meu amor.
DONA LEDA
Tu foi enganada, menina besta. Preste atenção!
LINDINHA
Num fui não, mainha. Ele vem me buscar. Confie!
Meia noite, no meu aniversário de dezoito anos. Foi
assim que a gente combinou. Eu só tinha que
esperar. Esperar todos esses anos. Esperar o meu
aniversário de dezoito anos. E eu esperei. Esperei
meu príncipe, que com certeza já virou rei. Esperei
a minha maioridade. Contava os dias, as horas, os
minutos, tudo. E chegou! Chegou! Foi aqui mesmo que
ele disse que vinha me buscar. A senhora entende
agora porquê eu quis fazer minha festa aqui,
mainha? Pra esperar o meu príncipe me buscar, o meu
rei.
(Notando que a música parou)
Volte a tocar, meu tio! Toque sua sanfona bem
lentinha. Romântica. No embalo dos apaixonados.
Pão sem Bico volta a tocar.
LINDINHA
Eu não quero tristeza. Eu vou pra longe, vou morar
num castelo longe desse milharal, mas vou voltar
sempre. Serei rainha! Vou poder dar uma vida melhor
pra todo mundo. Avia! Avia, meu tio! Toque com
gosto, porque é noite de festa.
GENÉSIO
Posso saber o nome desse cabra, Lindinha? Qual o
nome desse bexiguento?!!
LINDINHA
O nome...? Eu não sei, painho. Era o príncipe. Já
já ele tá chegando, o senhor vai ver.
GESSICA
Essa peste era o espantalho, minha gente. Lindinha
perdeu a mocidade pro espantalho.
LINDINHA
Não era espantalho não, era meu príncipe, de carne
e osso. Eu num tô mentindo, num tô avariando, não
foi ilusão. Foi verdade. Painho, eu não me
arrependo. E não fique triste, mainha. Fiz o que
fiz com a força do meu coração. A senhora não diz
que quando a gente faz as coisas com o coração, a
gente faz certo? Mesmo que destrambelhado, mas tá
certo? Pois então... Esperei muito por este dia. O
tempo passou devagarinho, quase parando, mas
passou. Ave Maria! É tanta ansiedade que num cabe
em mim. Ele já deve tá chegando. Por ali... O meu
príncipe tá chegando. Do jeito que a gente
combinou.
Neste instante, ouve-se o som de um corvo.
Pão sem Bico para de tocar.
LINDINHA
Oxê... E esse bexiguento desse corvo agora?
Querendo acabar com a minha festa, é? Mar menino!
Vai simbora, meu filho! Vai pra outras bandas,
porque aqui não tem mal agouro não.
(Lembrando)
Eita... Já tá na hora, meu tio. Toca aí! Toque os
parabéns, que já tá na hora do meu aniversário. Tá
na hora do meu amor chegar.
Pão sem Bico começa a tocar os parabéns. Os
convidados, prontamente, cantam em plenos
pulmões. Enquanto Dona Leda senta no chão
do milharal e chora, Genésio vai saindo
pelo mesmo caminho que chegou. Gessica ri.
E Lindinha olha fixamente em outra direção.
Ela espera. Ansiosamente, ela espera o seu
príncipe chegar.
Por Max Mendes
Comentarios