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Apologia aos livros ou Das altas ironias



É tudo o que eu desejo: que você não leia.

Que você não leia nunca porque assim eu posso me tornar o teu senhor.

Senhor de tudo aquilo que você desconhece e que só através de mim você sempre terá acesso.

Eu serei a porta e a janela a te mostrar os oceanos, os continentes e os espaços abaixo das estrelas.

Eu serei a tua casa.

Eu desejo – e isso é tudo – que você não leia nunca.

Porque só a mim caberá a sorte de te fazer crer nas minhas verdades.

Te contarei as histórias que eu desejar, as mais apropriadas para cumprir meu macabro plano de te subjugar e te oprimir.

Eu sou o paraíso que você deve almejar e os caminhos que eu te mostrar te levarão a mim, só a mim, de ti a mim, mais nada.

Porque minha voz será a tua voz: você - um eco dos meus desejos.

Para que te ensinar a ler se você poderá de mim se perder?

Para que te apresentar os livros se você poderá conhecer coisas mais fascinantes do que eu?

De mais nada você precisa, já tem a mim.

Para que inventar essa história de livros? Rastrear o quê?

Para que ser livre se a minha alcova já é uma casa completa? Prenda-se a mim.

Contaram-me que quem leu se perdeu porque as asas alçaram voo.

Para que sair do cárcere da minha gaiola e ir voar de árvore em árvore sem ter mais que velhos galhos secos para pousar?

Te desejo que nunca leia porque assim eu posso te alienar.

Porque assim posso te conter.

Mas se você insistir em abrir páginas para conhecer tudo o que me apavora que conheça, eu te condeno à cegueira física já que a espiritual cessará.

Assim continuarei te limitando e te salvando e te alimentando do meu caminho e do meu pensamento.

Eu te desejo que nunca leia porque a vida para quem lê é a vida de quem se transfigura porque passa a se conhecer.

Quem lê encontra a si ainda que envolvido por um confronto.

Quer se confrontar? Não leia.

Quer instalar um espelho na alma? Não leia.

Quer flutuar em pensamentos que te emancipam? Não leia.

Não leia nunca para que você não se arrepie diante de uma imagem poética.

Quem experimenta a catarse, padece.

Quero que jamais leia porque só os livros podem te mostrar universos mais fantásticos que o meu, poderes mais sofisticados que os dos mundos encantados e fantasias tão esdrúxulas quanto os segredos que guardamos.

Desejo que você nunca leia porque o poder do verbo é um mergulho no infinito: as palavras expõem a poesia em sublimação.

No princípio era o verbo. Se você ler, eu deixo de ser o verbo. Você passa a ser o verbo.

Quero que você leia nunca.

Eu, seu único tradutor, e basta.

Basta que eu possa, queira e transite por entre as páginas, estes caminhos que me tornam vivo por conhecer a vida.

Apenas eu, intransferível.

Suprimo de tuas mãos os livros.

Só eu quero encontrar o verbo, abraçar o verbo, roçar o verbo, beijar a metáfora do verbo, delirar na plurissignificação.

Só eu. Um livro em minhas mãos faz de mim um impávido rei: posso usá-lo a meu favor.

Quanto a você, me escuta.

Eu leio, eu te conto.

Te conto uma fake.

Elimino o que poderia te incitar à revolução.

Eu dito, você cumpre.

O livro é o Poder Maior. Não toque nele. É perigoso!

Deixa-me mostrar-lhe as linhas que guardam segredos: mas só depois de conhecê-las profundamente e peneirá-las, eu te ofereço o que te neutralizará.

Eu desejo que nunca leia porque assim eu te dominarei.

e a vida nunca me será uma ameaça.


Márcio Rabelo


Instagram: @rabelomarciooliveira

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