A percepção é a capacidade de combinação de dados sensoriais à cognição e à memória. Por meio dessas conexões são construídos conceitos que guiam nosso comportamento. Primeiramente, os estímulos sensoriais são processados. Assim, definições referentes à cor, movimento, localização espacial, timbre, temperatura, dentre outros, são combinadas e perpassam o sistema nervoso central para a formação de uma imagem e a orientação sobre o nosso comportamento em relação a ela (4).
As Branquelas (White Chicks) é um filme de comédia, lançado em 2004 e dirigido por Keenen Ivory Wayans (1). No longa, os irmãos Kevin (Shawn Wayans) e Marcus (Marlon Wayans) fracassam em uma investigação e são escalados para escoltar dois alvos de um possível sequestro: as irmãs Brittany (Maitland Ward) e Tiffany Wilson (Anne Dudek). No entanto, um pequeno incidente, durante o trajeto até o hotel em que iriam ficar hospedadas, faz com que Brittany rasgue o seu lábio e Tiffany corte o seu nariz. Com isso, as jovens, excessivamente preocupadas com suas imagens e com a opinião pública a respeito disso, se recusam a comparecer ao evento. Assim, os irmãos se veem obrigados, a fim de resguardar seus empregos, a assumirem as identidades das jovens.
O humor escrachado e os personagens caricatos renderam diversos memes nas redes sociais. Além disso, o longa pode ser considerado uma boa enciclopédia da cultura pop dos anos 2000 devido às suas referências, incluindo aspectos negativos. De fato, a película possui algumas problemáticas, como por exemplo, o diálogo no qual uma das antagonistas Vandergelds demonstra ter inveja das crianças africanas por não conseguir ser tão magra quanto elas. Tal diálogo exemplifica que a matéria-prima para muitas das piadas do filme consiste nos desdobramentos ocasionados pela pressão estética colocada às mulheres, dentre eles distúrbios alimentares, distúrbios de imagem e a realização de cirurgias plásticas.
Desse modo, um filme cômico como “As Branquelas” pode até não possuir um intuito de crítica social, mas possibilita-a ainda assim. A identidade corporal é construída por meio da intercomunicação e das relações sociais entre os indivíduos (3). Nessa perspectiva, a concepção do corpo belo modificou-se de acordo com as transformações históricas e socioculturais. Até o início do século XX, o padrão corporal desejado pelas mulheres era um corpo com sobrepeso, com concentração de gordura na barriga, nas coxas, nos quadris e nas mamas. No entanto, principalmente a partir da década de 1960, esse ideário começa a sofrer mudanças: o corpo magro e atlético passa a ser visto como um objeto de consumo que representa poder, beleza e mobilidade social e juntamente com ele, novos produtos e serviços ofertados por um mercado em ascensão. Como consequência disso, o culto ao corpo pode gerar grande insatisfação corporal, a qual é relacionada a uma assimetria existente entre a percepção e o desejo referente a um tamanho e uma forma corporal (2).
Os modelos contemporâneos ocidentais a respeito da beleza do corpo feminino, geralmente associados à magreza, podem vir transfigurados nos discursos individuais (3). Essa transfiguração pode vir na forma de transtornos, como a anorexia e bulimia nervosa que podem ser causados por fatores genéticos, ambientais e comportamentais. Ademais, pode influenciar na escolha por intervenções cirúrgicas. De acordo com Júlia Marques (3), o Brasil está entre os líderes mundiais no ranking de cirurgias plásticas, mesmo em um cenário de crise econômica. A temática de intervenções cirúrgicas com fins estéticos é percebida em dois momentos do enredo. Primeiro, no encontro de Kevin e Marcus já disfarçados de irmãs Wilson com as suas três melhores amigas: Karen, Tori e Lisa, as quais não se viam há um ano. Nele, umas das amigas percebe que as irmãs estão mais altas. E, para não levantar suspeitas do disfarce, elas justificam que operaram os joelhos. As amigas ficam surpresas e animadas com a notícia e já pensam na possibilidade de fazerem o procedimento também. Dessa forma, observa-se o quanto este é desejado e, de certa forma, banalizado por elas. Esse aspecto é mostrado também em uma segunda situação, num dos embates com as irmãs Vandergeld, quando uma delas diz “sua mãe é tão burra que faz exercício físico quando poderia muito bem fazer lipoaspiração ou algo do tipo”.
Vale ainda destacar a cena em que as meninas vão às compras para relaxar e se divertir. Mas algo que deveria ser prazeroso, termina gerando um grande descontentamento. Chegando lá, o grupo se divide. Lisa (Jennifer Carpenter) pede ajuda a Kevin (disfarçado de Brittany) na prova de roupas. Em contrapartida, Marcus (disfarçado de Tifanny) é acompanhado por Karen (Busy Philipps). No provador, Kevin fica impressionado com o corpo magro e longilíneo de Lisa e a elogia. No entanto, a garota percebe a fala da amiga de forma distorcida, como se ela estivesse sendo irônica. Então, Lisa fica extremamente chateada e começa a elencar detalhes em seu corpo que considera defeitos e que não correspondem com a realidade. Como por exemplo, chamar a si própria de "porca gorda", quando vemos notoriamente na cena que seu corpo é extremamente magro. Dessa forma, observa-se que Lisa, apesar de enquadrar-se aos padrões estéticos, é insegura em relação ao próprio corpo e possui indícios de sofrer algum distúrbio alimentar e de imagem.
Paralelo a isso, Marcus é obrigado a provar uma roupa que não corresponde ao seu tamanho. E quando afirma que gostaria de provar um número maior e mais adequado, Karen sorri e diz que ele não precisa disso, e sim de um empenho melhor para que a roupa de tamanho menor sirva. Tal diálogo evidencia que para ela não é a vestimenta que deve se adequar ao corpo e sim o corpo a vestimenta dentro de um tamanho normatizado. Ela desprende um grande esforço para ajudar a amiga a ter sucesso em vestir a peça e não desiste até fazê-lo.
Em suma, no caso da Karen observamos a materialização da pressão estética no cotidiano, ao passo que, em Lisa, vemos um de seus desdobramentos, a distorção da imagem corporal. Portanto, torna-se notória a influência dos fatores históricos e socioculturais na construção de modelos estéticos e os desdobramentos sofridos pelos indivíduos, em especial as mulheres, às quais são impostos enquadramentos dentro de padrões estéticos cada vez mais inatingíveis e, por isso, podem desenvolver distúrbios de imagem e alimentação, ou optar por intervenções cirúrgicas.
Por Érika Araújo
REFERÊNCIAS
(1) AS BRANQUELAS. Direção de Keenen Ivory Wayans. Estados Unidos: Revolution
Studios, 2004. (115 min.), son., color.
(2) Autopercepção da imagem corporal entre estudantes de nutrição: um estudo no município do Rio de Janeiro.
(3) A Auto-imagem Corporal na Anorexia Nervosa: uma abordagem sociológica.
(4) LENT, Roberto. Cem Bilhões de Neurônios: conceitos fundamentais da neurociência. São Paulo: Atheneu, 2001.
(5) Apesar da crise, número de cirurgias plásticas para estética cresce 25% em 2 anos.
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