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Caquexia




A distância entre o beiral da cama e o carpete manchado nunca pareceu tão grande. Acabara de acordar, mas o sono ainda lhe embotava os sentidos. Ou seriam os comprimidos de Xanax misturados com o vinho vagabundo da noite anterior? Esfregou os olhos com sofreguidão na esperança de despertar, mas o que conseguiu foram borrões negros nos dedos e na palma das mãos. O cheiro das velas aromáticas já não era suficiente para disfarçar o cheiro de suor e outros fluidos que impregnavam o ar do cubículo escuro em que se instalara. Os lençóis, ainda quentes, em nada ajudavam a disfarçar qualquer aspecto que fosse da vida de Sofia.

Firmando os dois pés no chão, atirou o corpo para frente com o impulso dos braços. Conseguiu não mais que quatro ou cinco passos trôpegos depois disso, mas fora o suficiente para se apoiar na beira da penteadeira carcomida que havia comprado de algum viciado do andar de baixo. Enfiou a mão em uma das gavetas procurando uma lingerie limpa, como se o asseio do tecido pudesse conferir alguma dignidade à sua boceta, mas a ponta dormente dos dedos vagueavam desordenadamente até que algo pontudo lhe espetou o polegar. Esbravejando, agarrou o objeto e descobriu que seu agressor era apenas a quina de um porta-retatos prateado que ganhara de sua mãe dois anos antes. Era uma foto de Larissa, a jovem sorridente que sonhava conhecer o mundo antes de se tornar Sofia.

Fitou a imagem por poucos, mas infinitos segundos. Lembrou-se de quando ainda era a pessoa do retrato. Com os olhos marejando tentava, em vão, comparar a suave imagem no papel à horrenda realidade do que via no velho espelho permanentemente embaçado. Os lisos fios louros já não eram mais bem cuidados e se desgrenhavam num amontoado xântico; os olhos verde-claros já não brilhavam e as pálpebras pesavam sobre o olhar absorto; os lábios bem desenhados que antes emolduravam um riso discreto agora se perdiam em meio ao reboco carmesim que, por motivos indiscretos, lhe alcançava as bochechas magras.

Chorou copiosamente ao não se reconhecer em si mesma. Com as mãos tremendo agarrou furiosamente o porta-retratos como se fosse se perder para sempre ao se separar da própria imagem. Os detalhes bordados no metal cravaram-lhe a pele, vertendo pequenos filetes de sangue. Não tardou até que, em uma explosão colérica, o amado objeto fosse arremessado contra uma das paredes. No apartamento ao lado uma colega de trabalho se condoía imaginando, a julgar pelo som do golpe na parede, qual tipo de pervertido estaria enrabando sua vizinha tão vigorosamente e a que preço.

Sofia, sentindo seu corpo extenuado e intoxicado, pendeu a cabeça para trás para tentar conter a forte tontura que todo aquele estresse lhe ofertara. Sabia que estava definhando física e mentalmente, que sua alma adoecera e que perdia progressivamente o controle de todos os aspectos de sua vida, e que isso lhe conduziria à um único fim, definitivo e inexorável. Mas sabia também que não conseguiria fazer nada para mudar, sua vontade e suas esperanças há tempos abandonaram-lhe. Se possuísse ao menos uma fração da força necessária para reverter alguns de seus erros, ainda seria a jovem sorridente da foto. Mas mesmo imbuída de pessimismo e desespero, adormeceu mais uma vez fazendo planos para um futuro muito próximo.

Por ironia, quem despertou naquela silente manhã de Setembro, entremeados nos lençóis imundos e tão manchados quanto o carpete, foi Larissa. Sofia era, naquele instante, não mais que uma recordação ruim. Havia um estranho ar de satisfação em seu sorriso oblíquo. Ao abrir os olhos naquela manhã ela sabia que nunca mais se submeteria aos seus fantasmas; nunca mais venderia sua dignidade; nunca mais provaria a repugnante mistura de esmegma e esperma que lhe impregnava a boca por horas; nunca mais sentiria nojo ou ódio de si mesma. Aquela manhã lhe trouxe tranquilidade como jamais experimentou.

Trocou os lençóis; limpou as manchas do carpete; posicionou os móveis de forma harmoniosa; comprou flores para enfeitar a velha penteadeira da qual poliu o espelho; comprou leitelho fresco, farinha, ovos, mel e canela, e preparou as deliciosas panquecas que aprendera com sua mãe quando garotinha. Foi até o parque no final do quarteirão com olhos ávidos, como se tudo fosse novidade. Sentiu o sol aquecer sua pele extremamente pálida. Ouviu os pássaros e cheirou a grama. Gastou tanto tempo quanto pode neste reencontro com uma parte de si que abandonara.·.

Já era noite quando subiu as escadas apertadas do velho edifício em que residia, mas desta vez soltava risinhos curtos toda vez que um degrau rangia, ao invés de se irritar como de costume. Parou no corredor do quarto andar, apertou uma das campainhas e disparou em direção às escadas novamente; só parou para abrir a porta de seu apartamento no sexto andar, ainda ofegante. Tirou os sapatos e debruçou-se no parapeito da janela para observar a cidade que se iluminava uma janela de cada vez.·.

Tirou um envelope amassado do bolso, desdobrou cuidadosamente seu conteúdo e o observou por vários minutos, estática. Colocou o papel e o envelope no parapeito, e sobre eles um globo de neve com a imagem de um anjo. Serviu uma taça do vinho caro que havia comprado mais cedo especialmente para aquela ocasião e sorveu de uma só vez. Serviu-se uma segunda vez, mas carregou consigo a taça até o banheiro, onde havia acendido duas ou três pequenas velas sem aroma ao redor da banheira de porcelana branca, posicionada no centro do parco banheiro.·.

Apagou as luzes e despiu-se sem pressa alguma enquanto colocava sua música favorita para repetir algumas vezes. Seus pés deixaram o piso frio do banheiro para tocar a água morna, um de cada vez, sucedidos por um gracioso movimento das longas pernas seguidas pelo corpo extremamente magro, mas indubitavelmente desejável, que se encaixou perfeitamente na banheira. Com a ponta dos dedos agarrou o pequeno frasco de vidro azulado ao lado da banheira e pingou algumas gotas de seu conteúdo na água. Adorava essência de patchouli. Colocou cuidadosamente o frasco no chão e agarrou outro pequeno objeto. A luz crepitante da vela refletiu por alguns instantes no aço fosco. Larissa estendeu o braço esquerdo e posicionou o fio da lâmina na altura do pulso. O frio metal dançou suavemente pela trilha azulada até a outra extremidade do antebraço, deixando um rastro rubro morno e encorpado. O sangue verteu, manchando a água e o patchouli. Repetiu de forma decidida o traçado da lâmina no braço direito, desta vez com menos suavidade devido à imperícia da mão sinistra. Uma única lágrima saltou do canto do olho.

Nunca mais sofreria, repetia mentalmente. A água totalmente tingida pelo sangue lhe lembrava de sua própria boca rebocada de batom vagabundo. Nunca mais. O ardor nos braços lhe lembrava das assaduras das noites em que recebia um cliente bem dotado. Nunca mais. O som alto lhe lembrava dos gritos abafados dos falsos orgasmos. Nunca mais. Pendeu a cabeça para trás, não para evitar a tontura, mas para se entregar à sensação da vida abandonando seu corpo e levando consigo arrependimentos, dores, fantasmas e sonhos despedaçados. Enquanto sentia a fraqueza irremediável se apossando do seu corpo, assim como havia se apossado de sua alma agora caquética, imaginou mais uma vez o porta-retrato e seu próprio rosto, mas a imagem foi lentamente desaparecendo, até que tudo se apagou. Nunca mais.

O apartamento escuro logo foi inundado pelo silêncio. O único som que se podia ouvir era o do vento soprando os pedaços de papel no parapeito, presos pelo globo de neve, com uma palavra circulada com caneta marca texto vermelha. Positivo.


Lucas Marchetti

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