top of page
Foto do escritorEscrita Cafeína

Dona Tina

Quando minha avó morreu, não exigiu-me lágrimas.

Comovia-me era vê-la viva, sempre mais e mais.

Cada dia da vida dela parecia ter sido tão único e impetuoso

que ao dia da morte restou apenas ser um dia qualquer.


O ônibus que me leva à Universidade

passa em frente à Casa Geriátrica Dra. G., na Vila Nova.


Na Casa Geriátrica Dra. G., na Vila Nova,

minha avó Ernestina queria mandar nas outras velhinhas.

Minha avó Ernestina era de novo a diretora

daquele abrigo para meninas carentes,

o Instituto Ana Jobim, em Viamão.


No Instituto Ana Jobim, em Viamão,

Ernestina se estressava e brigava

com seus inferiores e seus superiores

e acabou saindo.


Antes disso, Ernestina

foi professora em Vacaria,

em Caxias, Porto Alegre e Flores da Cunha.

Em tudo que se metia, Ernestina

se estressava e brigava

e saía e seguia adiante.


Em Vacaria, Ernestina

casou-se com H. G.,

filho de Francisco G.,

filho dentre treze filhos

de Alessandro G., italiano

como italiana Ernestina era.


Vacaria, a cidade que nasceu em volta

da capelhinha com paredes de barro e com teto de capim

erguida onde ficava a estátua

de Nossa Senhora da Oliveira, a Santa portuguesa

que um camponês, admirado, encontrou

em meio a tufos de grama

poupados pelo fogo da queimada dos campos

lá por volta de mil setencentos e cinquenta.


Ernestina, por sua vez, nasceu por volta

de mil novecentos e vinte, supostamente

em dezesseis de novembro daquele ano,

supostamente em Trento de Ferrara, na Itália,

filha de Pietro F. e de Magdalena Bottoselle.

Ernestina, inclusive, nasceu Ernesta.


Ernestina F., em mil novecentos e vinte e cinco, veio para o Brasil,

dizia ela que fugindo de Mussolini.

Magdalena e Ernestina foram a Vacaria

com o auxílio do médico italiano Giriolo,

o homem da casa preta,

que pedia a Magdalena ajudas de parteira.


Em Vacaria, Francisco G.

era médico renomado.

Já H. G., merido de Ernestina,

era integralista em Vacaria.

Dona Tina, Dona Tina,

a senhora não estava

fugindo de Mussolini?


Em dezesseis de fevereiro de mil

novecentos e quarenta, nascia

L. H. G., filho

de H. G. e Ernestina,

duas vezes italiano,

uma vez sul-riograndense.


Em mil novecentos e cinquenta e quase,

Ernestina já tinha brigado com H. G.

e ela e o filho foram morar em Porto Alegre.

Porto Alegre, Porto Alegre,

minha triste Porto Alegre.


Em Porto Alegre, morando

na Augusto Pestana, L. H. G.

casou-se com Vanira O. A., filha

de Felipe Miguel A., filho

de Maria, que veio do Líbano para o Brasil,

e filha (Vanira também era)

de Edi O., que escrevia letras de música,

cadernos e cadernos.


Em Porto Alegre, morando

na Augusto Pestana, Ernestina

conheceu o Brasil.

Pelo Brasil, aliás,

Ernestina se apaixonou.

(Brasil era o nome

do então motorista de Ernestina.)


Mudaram-se para a Ramiro.

L. H. G. foi fotógrafo da Última Hora,

o atual jornal Zero Hora.


Mil novecentos e sessenta e um:

a Campanha da Legalidade de Brizola.

Em Bento, fugindo da agitação,

Ernestina abriu uma farmácia

com seu irmão Bepe, representante de produtos farmacêuticos.

Também trabalhou, Ernestina, na Secretaria de Educação do Município.


Ernestina, sempre metida em política.

A mãe de Ernestina, Magdalena,

foi a parteira do parto

de Sinval Guazzelli, governador

do estado pela ditadura da ARENA,

e Ernestina se dava com ele.

Dona Tina, Dona Tina,

a senhora não estava

fugindo de um ditador?


Ernestina e Brasil construíram casa

na praia de Cidreira, no RS,

por volta de setente e nove.

Ernestina fez uma cabana

com as telhas que íam para a casa

e embaixo dela dormiam

e faziam comida para os peões da obra.


Ernestina e Brasil moraram

a partir de oitenta ou oitenta e um

na Restinga, em Porto Alegre.

Ernestina fez jantares

para arrecadar dinheiro

para a construção do prédio

da Brigada Militar,

e fez parte do Conselho

Regional de Segurança Pública.

Ernestina sempre,

sempre metida em política.


Brasil morreu em oitenta e sete

ou oitenta e oito.

Em dois mil e dois, mais ou menos,

L. H. G. e Vanira, já velhos,

foram morar com Ernestina na Restinga,

e Ernestina ficou tendo com quem brigar

até precisar ir à Casa Geriátrica Dra. G.,

tudo de novo.


Pedro Guerra Demingos

Posts recentes

Ver tudo

Cavaleiro Negro (Aline Bischoff)

Onde vais pelas trevas impuras, cavaleiro das armas escuras (...) Cavaleiro, que és? – que mistério Que te força da morte no império Pela...

Brinquedos (Alessandra Barcelar)

Lucas e Adalberto escreveram sua carta ao Papai Noel juntos. Empolgados, eles conversaram sobre o que fariam quando recebessem seus...

Múltiplas (Valéria Pisauro)

Dentro de mim cadeado, Porta aberta, cárcere privado, Ventre ancestral do tempo, Dentro de mim, muralha, Que a palavra não apaga Chica da...

Comments


Deixe seu comentário:
bottom of page