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Hannah Arendt, Pensadora destemida



Quem acompanha a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid se depara às vezes, em notícias e análises, com expressões como “banalidade do mal” e nomes como o de Hannah Arendt e Eichmann.

Arendt integra uma numerosa e aguerrida tradição de mulheres amigas da sabedoria. Ela foi uma pensadora política alemã, de origem judaica, das mais influentes do século 20. Entre quase vinte importantes livros, Arendt escreveu “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal”. Essa obra reporta o julgamento, por um tribunal israelense, do tenente-coronel nazista Adolph Eichmann, condenado por organizar a logística do transporte de milhões de judeus para campos da morte.

Arendt nasceu em 1906 numa família de judeus secularizados, perto de Hanôver e faleceu em Nova York, em 1975, com 69 anos. Aos catorze já lia Emmanuel Kant e o existencialista Karl Jaspers. Em 1924, com dezoito anos, ingressou na Universidade de Marburg onde assistia magnetizada às aulas do filósofo Martin Heidegger – ambos foram amantes durante dois anos, mas há quem diga que o amor durou por toda vida deles. Arendt frequentou cursos em outras universidades e defendeu a tese intitulada "O conceito de amor em Santo Agostinho", orientada por Jaspers. Em 1929, ela se mudou para Berlim, casou-se com o jornalista e filósofo Gunther Stern e sua tese foi publicada. Ela escrevia para jornais e frequentava círculos intelectuais. Dedicou-se ao estudo de questões políticas, com foco na exclusão social dos judeus e no feminismo. Em 1933 – ano da ascensão de Hitler – ela se engajou numa organização sionista e acolheu refugiados. Durante oito dias esteve presa com sua mãe, pela Gestapo, a polícia secreta. Arendt rompeu com Heidegger, porque ele se filiara ao Partido Nacional-Socialista. Rompeu também com amigos intelectuais, simpatizantes do nazismo.

Por ser judia, foi-lhe negado o acesso à docência em universidades alemãs o que, somado à perseguição pelo envolvimento com o sionismo, motivou sua fuga do país. Passou por Praga, Genebra e chegou afinal a Paris, onde viveu oito anos. Aí fez amizade com vários intelectuais como Sartre e Walter Benjamin. Ativista, Arendt encaminhou crianças e jovens judeus a kibutzim na Palestina. Em 1941, com a França ocupada pelos alemães, ela ficou detida durante cinco semanas num campo de internação francês. Também fora detido seu segundo marido, o poeta e filósofo Heinrich Blücher. Os dois fugiram, passando pela Espanha até Portugal, pretendendo chegar aos Estados Unidos. Em Lisboa, a notícia do suicídio de Walter Benjamin lhe provocou profundo impacto e depressão. Mesmo assim, escreveu o ensaio “Nós Refugiados”, sobre a situação dos párias e apátridas, como ela.

O casal chegou aos Estados Unidos em 1941, onde Arendt trabalhou em editoras e organizações judaicas. Em 1949, ela passou quatro meses na Europa, a serviço de uma organização judaica. Na Alemanha, reencontrou Heidegger a quem tentou reabilitar, tendo recebido severas críticas.

Em 1951, foi publicada uma de suas obras mais importantes, “Origens do Totalitarismo”. Sucesso imediato. Nela, Arendt equipara nazismo e estalinismo, analisa a banalização do terror pelo Estado, a manipulação da sociedade civil, a massificação política através da propaganda e o entorpecimento da capacidade dos indivíduos de pensar por si e de fazer juízos de valor.

Ainda em 1951, Arendt obteve a cidadania americana: terminava aí um período de 18 anos em que foi apátrida. Também começou a lecionar em diversas universidades. De 1967 até 1975, trabalhou na New School for Social Research em Nova York.

O destemido relato de Hannah Arendt sobre o julgamento de Adolf Eichmann a colocaria no olho do furacão. Em 1960, ao saber que o nazista tinha sido preso em Israel, – fora sequestrado na Argentina pelo serviço secreto israelense – e ao inteirar-se dos preparativos do julgamento, ela se ofereceu à prestigiosa revista The New Yorker para ir a Jerusalém fazer a cobertura jornalística do evento. Arendt estava ansiosa por conferir suas ideias trabalhadas em “Origens do Totalitarismo”, e ser testemunha ocular das reações de um agente desse sistema político. Aceitaram sua oferta.

Durante seis semanas, Hannah assistiu ao julgamento e reuniu farta documentação. O processo judicial durou de 11 de abril de 1961 a 1º de junho de 1962, quando o réu foi enforcado. Em 1963, nove meses após a execução de Eichmann, o The New Yorker começou a publicação, em cinco partes, do material produzido por Arendt. Da compilação dessas reportagens resultou o livro “Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal”, também publicado em 1963.

Em “Eichmann em Jerusalém”, a autora assumiu posições especialmente controversas. Aliás, ela dizia que não se encaixava e que era preciso “pensar sem corrimão”. Uma primeira polêmica envolveu o perfil do nazista, que ela pintou não como um monstro ou um demônio, mas como um homem apavorantemente banal, cuja linguagem era repleta de clichês. O réu não se considerava culpado por organizar a logística da deportação de judeus para campos de extermínio. Campos esses que, aliás, ele visitara, execuções que presenciara. Reivindicava merecer elogios pelo que denominou sua “obediência cadavérica” às ordens superiores. Dizia não ter condições de avaliar suas ações e que seu objetivo principal era ascender no partido nazista. Um burocrata e carreirista, portanto. Para dar conta da contradição entre um homem comum e seus atos monstruosos, inéditos na história humana, Arendt elaborou o conceito de “banalidade do mal”. Significa que o mal não é praticado por seres sobrenaturais ou excepcionais: o mal está à disposição de qualquer pessoa, basta que abdique de pensar por si. Em resumo, qualquer um poderia ser Eichmann.

Uma segunda controvérsia nasceu do questionamento de Arendt à legitimidade do tribunal israelense que teria promovido um “julgamento-espetáculo”. Considerou que o promotor havia alinhado sua retórica à ação política do primeiro-ministro Ben Gurion. Este defendia ser necessário um Estado de Israel forte para proteger os judeus de todo mundo. Arendt relatou que foram enviadas ao governo israelense centenas de manifestações de grupos pedindo a suspensão da sentença de morte. Destacou que professores da Universidade Hebraica de Jerusalém, liderados pelo extraordinário Martin Buber, opuseram-se àquele julgamento desde o começo, e pediram clemência da sentença de morte. Arendt acusou o julgamento de estar repleto de irregularidades e de ter deixado para trás o objetivo fundamental, o de fazer justiça. Segundo ela, o tribunal jamais pensou que o extermínio de judeus e ciganos fosse mais do que um crime contra esses grupos, e sim um crime contra a humanidade.

A terceira discussão surgiu da crítica de Arendt à cooperação dos Conselhos Judaicos “quase sem exceção”, com Eichmann e os nazistas, sob pretexto de evitar o “mal maior”. Ela concluiu: “Para um judeu, o papel desempenhado pelos líderes judeus na destruição de seu povo é, sem nenhuma dúvida, o capítulo mais sombrio de toda uma história de sombras”.

A reação a “Eichmann em Jerusalém” foi avassaladora e violenta. A colaboração de Arendt em veículos impressos foi suspensa e vários amigos romperam com ela. Choveram cartas, telefonemas e artigos acusando-a de ser pró-nazi e insensível às vítimas do Holocausto. Também foi acusada de aceitar ingenuamente as declarações do nazista, que assumiu como demonstração de suas teses sobre o totalitarismo. A polêmica persiste.

Seja como for, as ideias de Arendt mostram vitalidade e ajudam a compreender governos como o do ex-presidente Donald Trump e seguidores, como o presidente brasileiro.

As mortes do amigo e mentor Jaspers, em 1969, e do marido Heinrich em 1970, deixaram Hannah Arendt devastada. Fumante inveterada, ela veio a falecer em 1975 de ataque do coração em seu apartamento, conversando com amigos. O legado dessa admirável pensadora ganha sempre novas contribuições de inúmeras associações de pesquisa dedicadas a seu pensamento. Também numerosos locais públicos cultuam sua memória. Como na cidade italiana de Bolzano, em que o frontispício de antigo monumento fascista, remodelado, ostenta conhecida frase de Arendt: “Ninguém tem o direito de obedecer”.

(Recomendo o ótimo filme, “Hannah Arendt”, no Youtube, que mostra como a pensadora acompanhou o julgamento de Eichmann).


Jorge Claudio Ribeiro

 

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