Na história da humanidade, alguns ciclos de doenças se repetem de tempos em tempos, causando reflexão e tomadas de ações, justamente com o intuito de evitá-las e tomar medidas para que não voltem a acontecer. Ainda assim, tragédias acontecem, como o surto de pandemia dos dias atuais, que veio de modo avassalador, maior até que seus antecessores mais recentes como a “vaca louca”, “gripe aviária”, e, a que mais se assemelha a ela, a “peste negra”, gripe que assolou os terrenos europeus na segunda metade do século XIV, na Europa (1).
A peste negra teve sua origem no continente asiático, precisamente na China. A peste foi propagada à Europa através das caravanas de comércio que vinham da Ásia e passavam nas cidades mercantes como Veneza e Gênova. As condições precárias de higiene favoreceram a propagação da doença, transmitida inicialmente por ratos e, na medida em que a doença avançava, passou a ser propagada pela via aérea, através de espirros dados pelas pessoas. O tratamento na época era feito com vacinas e isolamento social.
Passados mais de sete séculos, novamente uma pandemia de grandes proporções assola a história do mundo. Diante dessa ameaça, são observados alguns comportamentos auxiliares na compreensão da relação humana com a epidemia, vistos quase como um ritual. Isso se deve pela repetição de alguns hábitos e a importância de cada um deles para interpretar o fenômeno. Nesse sentido, é possível fazer um paralelo com os cinco estágios do luto (2), trabalhados por psicólogos e psiquiatras para pessoas que lidaram com grandes perdas. Ou seja, pode-se pensar em: negação, raiva, depressão, barganha e aceitação.
A negação ocorre no começo, quando o evento é tratado como algo irrelevante ou que não aconteceu, sem ter a dimensão que lhe é devida. No caso da Covid-19, essa etapa foi vista mundo afora em que alguns líderes mundiais tendem, em função dos seus próprios interesses, a negar as evidências dos fatos conforme são dispostas pelos cientistas. Isso não se trata de uma novidade, visto que a aceitação ou negação do saber científico, variava de acordo com os interesses dos grupos sociais que ocupam o poder em um determinado período. A depender da ideologia política, a ciência era vista como aliada ou inimiga, independente do que acontecia na sociedade. Um exemplo desse modo de agir pode ser visto em uma fala feita pelo deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente brasileiro, tentou diminuir a OMS e o seu diretor-geral, Tedros Adhanom, argumentando que como ele não foi eleito pelo povo brasileiro, a sua fala teria menor importância. Entretanto, essa fala perde em credibilidade, devido ao histórico da instituição com muitos estudos desenvolvidos e grande credibilidade reconhecida no mundo (3).
Após isso, vem a raiva, uma sensação conhecida pela perda da razão, incapaz de raciocinar diante da crise, apenas reagindo em função de algum evento. Essa etapa é um pouco mais difícil de ser percebida, embora possa ser apontado nos interesses dos investidores e empresários que se posicionaram contra a parada total, não levando em consideração os efeitos da pandemia e convocando carreatas para protestar pela parada do comércio, chegando um deles a dizer que o Brasil não poderia parar devido a “5000 ou 7000 mil pessoas que vão morrer”, sendo a parada na economia algo pior do que a pandemia (4).
A depressão, quadro caracterizado pela tristeza, isolamento e saudade dos entes queridos, pode ser observada nos profissionais que estão na linha de frente do combate à pandemia. Médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, entre outros, estão passando por esse estágio ao serem submetidos a forte estresse, ao uso de equipamentos precários de proteção, além de estarem privados do convívio com suas famílias, ficando ausentes de casa por muitos dias, compondo um quadro de tristeza e frustração, levando em alguns casos até ao suicídio.
Contudo, assim como ocorreu no passado, o crescimento constante dos casos da pandemia fez valer a recomendação dos especialistas para serem aplicadas as medidas do isolamento social e da quarentena. Nesse cenário, destaca-se a barganha, uma vez que, para evitar a parada total, foram selecionados os serviços essenciais que não podem parar: como a saúde, com a criação de novos hospitais e a convocação de mais profissionais para a saúde; assim como novas regras de funcionamento para o comércio, limitado a supermercados, mercados municipais e farmácias, oferecendo aos comerciantes os equipamentos necessários para a sua proteção e precaução.
Por fim, vem a aceitação, que seria quando as pessoas aprendem a lidar com o problema, seguindo as precauções dadas pelas organizações de saúde. Destaca-se aqui a Europa, onde alguns países começam a retomar a rotina, como a Alemanha, que agiu no princípio da pandemia, solicitando as pessoas que ficassem em suas casas. Contando com o apoio de hospitais temporários e a aplicação de uma grande quantidade de testes, o país teve uma taxa de letalidade muito baixa, proporcionando a reabertura de lojas menores no último dia 20 de abril. A Noruega, outra que seguiu à risca as instruções, reabriu as escolas também essa semana (5).
No caso do Brasil, ocorre um impasse sobre as medidas a serem tomadas, uma vez que não há um alinhamento perfeito das ações a serem tomadas, pois o presidente e os governadores e prefeitos tomam direções opostas no que remete aos cuidados com a epidemia, já que o dirigente maior do país segue pleiteando a diminuição da quarentena e a abertura do comércio, enquanto as instâncias subsequentes apelam para que a população faça o isolamento social, ficando em suas residências. A dificuldade em ter uma diretriz única de ação, confunde a população, levando a uma adesão irregular ao isolamento, o que acaba gerando uma elevação grande no número de casos, chegando a colapsar a rede de saúde em alguns estados, como no caso do Amazonas (6).
Apesar de não ser uma “novidade” na história da humanidade, a Covid-19 vai deixando suas marcas, forçando as pessoas a se adaptarem e buscarem alternativas diante dos bloqueios e dificuldades impostas por uma nova rotina instaurada para todos. Nesse contexto, cabe a nós refletir sobre a importância dos cuidados na vida em sociedade, das novas formas de se relacionar em momentos de crise e do papel da ciência para solução de problemas, aceitando o luto e desenvolvendo nosso legado para as próximas gerações.
Por Miguel Barros
Referências:
Referências
(1) Peste negra.
(2) Cinco estágios do luto: sabemos lidar com a morte?
(3) Ciência em tempos de crise.
(4) Por lucro durante a pandemia, milionários brasileiros desprezam mortos, ciência e dados.
(5) Primeiros países a adotar isolamento na Europa relaxam medidas restritivas com cautela.
(6) Saiba por que Manaus entrou em rápido colapso com os casos de covid-19.
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