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O gênero na literatura de cordel




Ao observar a formação cultural brasileira, é interessante assinalar entre as influências advindas da colonização europeia, a literatura de cordel. Conhecida por sua capacidade para comunicar, essa literatura ganhou características próprias no Brasil, adquirindo uma nova métrica, mas mantendo a sua oralidade, traduzida nas recitações das histórias dos folhetos com temáticas diversas abordando tanto a visão de mundo de seus autores, quanto a criação de universos fantásticos, retratando heróis e as suas realizações.

Herdeira dos cantos de cantadores e violeiros, a literatura de cordel ganhou esse nome devido à forma como eram vendidas as produções portuguesas, penduradas por um cordão do tipo barbante. Entretanto, no Brasil, a literatura de cordel era comercializada em feiras livres, especialmente no nordeste, dispostos em malas, mesas ou até expostos no chão. O cordel caracteriza-se por ser composto por estrofes de 6 ou 7 versos, em que são rimados os versos 2, 4 e 6, dispostos em folhetos de 16 ou 32 páginas. Os folhetos são compostos por histórias diversas desde a caracterização de disputas imaginárias (pelejas) até o comentário sobre as notícias do mundo.

Nesse sentido, cabe destacar que o cordel iniciado no Nordeste se expandiu para o resto do Brasil, servindo de tema para novelas, filmes, escolas, além de ser um meio para fazer campanhas de prevenção contra o câncer de mama, entre outros assuntos.[1] E dentro desse universo de temas e histórias da literatura de cordel, uma observação pertinente gira em torno da discussão sobre as relações de gênero nas obras, ou seja, quais os papéis atribuídos a homens e mulheres nesse contexto?

Partindo da noção de gênero como um elemento integrante das relações sociais e um dos primeiros modos de caracterizar as relações de poder, observa-se na literatura de cordel, a construção de diversos modelos de masculino e feminino, predominando na maioria delas, a presença dos homens como protagonista das histórias. Essa hegemonia masculina pode ser explicada, entre outros fatores, pela maioria dos autores serem do gênero masculino, uma vez que, nos primórdios da literatura de cordel, eram os homens quem escreviam e declamavam os seus textos, cabendo às mulheres, cuidar da família.

Ao mergulhar nesse universo, destaca-se, entre as produções contemporâneas, o folheto Presepadas de Chicó e Astúcias de João Grilo, de autoria de Marco Haurélio, lançado em 2008. Esse folheto tem a sua história retratada no Nordeste, em específico na Bahia, narrando as aventuras de João Grilo, desde a infância até a vida adulta. Além do cenário rústico do sertão nordestino com personagens dividindo espaço com animais, nessa história, destaca-se o homem como centro das atenções no contexto, tanto para atuar como vilão, quanto para ser ressaltado enquanto herói. Nesse sentido, vale apontar a primeira descrição dada ao protagonista por parte da mãe que o define como “amarelo”:

Ela disse: - Sim, senhor;

É um amarelo malino

É feio que só a fome,

Porém é muito ladino;

Mas eu não tenho recurso

Pra criar este menino. (HAURÉLIO, 2008, p. 7)

Amarelo”, nesse contexto remete à definição da aparência física como pálida e fraca, características dos trabalhadores de engenho ou de usina, no que eram ressignificados nas histórias dos folhetos de cordel, como personagens espertos, capazes de enganar os demais como é o caso de João Grilo[2]. A violência entre os personagens também é o que move a narrativa, seja ela física (agressões, socos) ou psicológica (xingamentos, indiferenças), como um modo de excluir os personagens pelos estratos sociais que ocupam. Tal fato pode ser destacado tanto na primeira parte da história com a relação padre x João Grilo, quanto na segunda parte, com a introdução de Chicó (outro amarelinho, caracterizado como “contador de histórias”) confrontado por Carabina, chefe político da região.

O coronel disse: - Cabra,

A mentira é um assalto:

Você fará um castelo

Começando pelo alto -

Ou vai dormir para sempre

Numa cama de cobalto! (HAURELIO, 2008, p. 21)

Nas duas situações, a forma de enfrentamento consiste no uso da esperteza, através da argumentação, amparada, em algumas situações por um representante da lei (juiz, delegado). Interessante assinalar que, apesar da demarcação de tempo, uma vez que o protagonista começa criança e cresce ao longo da narrativa, o papel delegado ao gênero feminino é bastante limitado, com poucas falas e sem relevância para a forma como as tramas são desenvolvidas.

Outra história destacada nas produções atuais é o folheto Gracinha Corneita, a malazartes de minissaia, de autoria de Franklin Maxado, lançado em 2011. Se na narrativa anterior, as mulheres quase não aparecem ou são relegadas ao segundo plano, nessa produção, o domínio da história é todo feito por uma personagem feminina, Gracinha. O início do folheto começa fazendo uma alusão ao feminismo, movimento capaz de inverter os papéis de gênero.

Feminismo triunfante

Já chegou para valer

O macho se envergonha

De ser forte e ter prazer,

Querendo ficar por baixo,

Pôr avental, lavar tacho,

Limpar a casa e varrer (MAXADO, 2011, p.3)

Essa reversão de papéis no cordel dialoga com as lutas do movimento feminista por igualdade de direitos, com a participação maior dos homens nas tarefas domésticas e nos cuidados com os filhos, passando de uma perspectiva de “ajuda” para, de fato, um cuidado com o lar que dividem com suas parceiras. Contudo, essa ajuda ainda não é suficiente, pois as mulheres dedicam quase o dobro de horas nas atividades do lar.[3]

A história começa com o destaque para Gracinha, filha de uma mãe solteira, de família pobre e residente na zona rural, distante da capital da Bahia. Certo dia, em uma feira semanal, a passagem do circo, mudou a vida da menina descoberta por um palhaço, passou a trabalhar no circo, como faxineira. A partir desse momento, a personagem vai observando e aprendendo como é a vida de um artista, amadurecendo dentro do circo. Nesse sentido, é interessante ressaltar que, mesmo quando as mulheres ocupam um papel de grande relevância, isso não acontece sem gerar conflitos, uma vez que o masculino atua para manter os seus privilégios, tentando limitar a sua liberdade, para defender seus próprios interesses.

(…) O seu dono, sem pudor,

A ofertava na raça

Ao juiz ou delegado.

Ficava o descarado

Então montada na praça. (MAXADO, 2011, p.11).

Todavia, aqui a personagem feminina é retratada com inteligência, utilizando-se dos espaços de dominação e opressão como um meio para construir a sua própria liberdade. Seguindo a inversão de papéis, a mulher agora, age com esperteza, mostrando ser capaz de se adaptar às circunstâncias, sem medo das disputas de poder, mantendo-se leal aos seus objetivos.

Graça, ali, era a primeira.

Tudo era secundante.

Ela, do circo, era a graça,

Vê-la era gratificante. (MAXADO, 2011, p. 11)

Assim como no folheto anterior, a história é caracterizada por várias inversões de papéis, colocando a mulher como uma personagem ativa, atenta e interessada em buscar os seus sonhos e desejos, passando de dominada a dominante, livre para exercer sua sexualidade, sem se submeter aos anseios dos homens para ser feliz.

É possível observar nas duas histórias, formas diferentes de abordar as relações de gênero. Na primeira, uma posição mais hegemônica, em que todo o destaque recai sobre o masculino, sendo o sujeito e a vítima de todas as ações em uma relação calcada na violência e na dominação pela força e pelo poder. Já na segunda história, aponta-se para a presença de um feminino transgressor, traduzido pelas atuações de uma mulher, que amadureceu perante a adversidade, ocupando espaços desconhecidos e fazendo-se protagonista, utilizando-se da sedução como arma. São formas diferentes para caracterizar o gênero dentro das relações de poder, apontando para as tensões nos meios sociais e os meios utilizados para resolvê-las, configurando gênero como uma categoria capaz de assumir significados diversos de acordo com o contexto em que está inserido.[4]



Por Miguel Barros



Referências:

[1] Campanha aprova outubro rosa e novembro azul em forma de cordel. <http://www.boanoticia.org.br/campanha-apoia-outubro-rosa-e-novembro-azul-em-forma-de-cordel/>

[2] A inspiração para a criação dos personagens “amarelinhos” foi feita baseada nos contos populares portugueses, em especial, baseada em Pedro Malazartes, herói astucioso nas cantigas populares portuguesas do século XVI.

[3] Participação dos homens nas tarefas domésticas cresceu, diz IBGE. Disponível em: <https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/04/26/participacao-dos-homens-nas-tarefas-domesticas-cresceu-diz-ibge.ghtml>.

[4] Ressalta-se que os folhetos aqui analisados fizeram parte da pesquisa feita no livro Relações de gênero na literatura de cordel (2015). Para outras informações sobre o estudo realizado e a história da Literatura de cordel, fica a sugestão para leituras futuras.

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