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Os bêbados não descem ao meio-fio impunes





- CAÍ!...


A palavra vinha-lhe seca e sonora como uma queda abrupta. Um ora pro nobis repetido em penitências, a ladainha. O andarilho bêbado, em andrajos, corpo arqueado, cambaleava junto ao meio-fio como quem fizesse a revelação pública de um pavor íntimo, guardado ou escondido – O homem segurou o tombo com um inevitável abraço surdo, encaixado no ereto poste da rua; seus olhos esbugalharam-se silenciosos, mas amarrotados como um mangá humano, desenhado à revelia e na diagonal, com obscuras perspectivas e pontos-de-fuga. Uma realidade virtual e desconhecida, o labirinto de um porvir estampado no rosto ébrio.


- CAÍ!...


Estanquei-me sem qualquer razão mais aparente, o meu costume diário, ali na lanchonete do Ananias. Um boteco de esquina, tal qual esses a quem chamamos de pé-pra-fora. Posicionei-me junto à porta para algo inevitável, entretanto, pressentido, bem ali, à minha frente: o bêbado repetia as sílabas insistentes, delirando nomes e datas e feitos e fatos que, aos poucos e a rigor, situavam-no num setor de serviços de uma empresa ou uma indústria qualquer...Um operador de sistemas?... Quem sabe um atendente?... Um Chefe de Setor?... Um Coordenador de Área? ... O próprio Diretor?... O que se via, ali, no entanto, era o improvável desafio do bêbado entre o seu esvair do mundo corporativo e o avançar junto ao grupo esquálido, que supostamente, o esperava na outra margem da rua. Quem seriam, para ele, aqueles andarilhos urbanos, mendigos, ajuntados ali, e sem-moradia, em meio à calçada crua sob a marquise protetora?... As mãos do bêbado, automáticas que foram, revistaram, inutilmente, os bolsos fundos à procura de algo. Afundaram-se, ambas as mãos, em busca do avesso, do avesso, do avesso. Seria um celular?... Uma agenda eletrônica?... Um caderno de anotações?... Um laptop? O Iphone?... Como eu, ali presente, quem o visse, naquela medida de distância, logo entenderia: “era urgente e/ou urgentíssimo comunicar o atraso sobre a importante reunião da qual deveria participar... Quem sabe, talvez, coordenar?”...

Os sons embolados – numa sintaxe irretocável e irreconhecível - formavam um emaranhado de vozes e nomes e datas e tarefas e projetos, como fossem uma linha cruzada em línguas diversas: as palavras, todas, soavam ali, irrealizáveis, soltas e desconexas, todas elas carentes de uma história que haveria, por certo, de existir. Diante do pânico e temor de um passo em falso, os gestos do bêbado fixaram-se, estáticos, nas minhas retinas, elas, sim, turvas e impacientes....


- CAÍ!...


Agarrado ao poste, o andarilho bêbado experimentava o horror das alturas, vociferando um ódio mortal pelo desnível assustador entre a calçada e a rua. Estava escrito, ali, o prenúncio de uma queda naquele pequeno vão livre de poucos centímetros que lhe ensandecia o corpo e a mente: o drama de um pacote solto por um guindaste, a despencar sob os olhos desesperados dos tripulantes e estivadores na imensidão do cais do porto. Como um arbusto que se alastra, criando contornos próprios e de defesa, o bêbado estendeu seus braços e os pés em forma de uma concha num sinuoso movimento de cai-não-cai: agulha e linha de uma fábula contemporânea, o bêbado e o poste. O poste e o bêbado. O corpo torto costurando o invisível tecido urbano, entrecortado pelo trânsito intenso e feroz de um dia nada comum. A voz do bêbado vinha do fundo, arrancando o grito e o sangue, penalizada, temerosa, como a suplicar uma volta atrás, ainda que sofredora ou acolhedora... Retornar, quem sabe, à empresa?... Voltar, talvez, à família?... Reassumir o antigo Setor Contábil?... Criar novas metas para as equipes de vendas?... Preparar o novo programa de pós-vendas aos clientes?... Em seu silêncio regrado, o bêbado não disse: Recuperar a mim mesmo!... Talvez, tenha jurado com os dedos em cruz, ou apenas fora o que eu mesmo entendi, sóbrio, lúcido e necessitado desse gesto honroso para o homem à minha frente.


- CAÍ!...


O andarilho bêbado enfatizava o som intransitivo junto ao meio-fio. Corpo e voz sintonizados vivos naquela epopeia urbana. Um rosário de lamentações, o delírio. O vocabulário bêbado reduzido ao único e inevitável verbo. Interjeições e complementos mantinham-se ausentes como num suicídio premeditado, sem cartas de explicação dentro de gavetas, ou escondidas em caixas camufladas no interior de um armário. O bêbado adiava, a olhos vistos, o seu inevitável tombo. Nenhuma interjeição pra resistir-lhe o peso. Um passo-a-passo para o abandono do emprego e a demissão por justa causa. Seria o Jorge, aquele do turno da noite?... Não, o Antônio, o da logística, do setor de trâmites com o Brasil Central?... Ele?... Ele mesmo?... Será?!....


- CAÍ!...


Os bêbados não descem ao meio-fio impunes. O medo do estatelamento e o baque fatal são o preço do pedágio. A palavra exata e coesa traduzia-lhe a derrocada vertiginosa do topo de uma pirâmide. Gole após gole, o peso do corpo fragilizando-o diante das salas frias e burocráticas. O entra-e-sai durando a eternidade. O bêbado persistia naquela frase completa, que por si só se desfazia num arriscado voo no universo plano. Corpo e alma simplificados naquela oração enfática, reiterada ilegível e insistentemente. Os bêbados não se arrastam às pedras sem a sonoridade. Decibéis inaudíveis, o grito agudo - a cara no chão! No leito asfáltico, os veículos acentuavam o movimento da cena. O pânico do meio-fio surgia-lhe como uma inacabável ampulheta. O andarilho bêbado, ali, à minha frente, ao rés do chão, capaz de segredar-me data, hora e o lugar que lhe valeram a queda no abismo: as odisseias intermináveis pelos corredores e salas ouvindo, insistentemente, sermões, refrões e lenga-lengas, que lhe soavam como uma punhalada pelas costas: Entre, Senhor Fulano, estamos esperando, entre!...Venha, Senhor Sicrano... por aqui, me faça o favor!...


- CAÍ!...


A derradeira palavra, a mesmíssima, soou-me, agora, abafada, como uma queda à distância. O bêbado ergueu-se com o esforço possível, graças à força do seu pé de apoio. E, resistente, com quem se lançasse às últimas energias diárias, arranhou o poste como uma parede nua, em que se abrem frinchas profundas. Soergueu-se, olhando-me incisivamente. Olhando a mim e o nada. A rua inteira e a ausência. Olhando a rua e ninguém. A calçada e os vultos. As pessoas e o vazio. Os veículos e o espaço inútil. Os passos em falso do bêbado, ambos, juntos, atiraram-no à rua, à frente, ao meio fio, na medida exata do chão duro... O baque certeiro do ônibus encarregou-se do sucesso da empreitada. Os bêbados não descem ao meio-fio impunes. Em meio às vozes e burburinhos, ouvia-se sucessivos apelos para o número do carro-resgate, dito em tom de insistência e desespero pelos celulares mais próximos. Ainda sob o som de sirenes cortantes, aproximei-me da cena com o desconforto possível. Réu e testemunha, abri espaços entre a aglomeração para um último olhar sobre o andarilho, que mantinha os olhos esbugalhados e estáticos e diretos sobre mim, como quem passasse às minhas retinas, agora, um enunciado completo, escrito a mão, com todas as letras, sílabas, frases e o significado completo da sua história. Sou ali, então, seu prisioneiro... um cego, surdo e mudo, reverenciando uma tragédia anunciada, sem me dar conta sequer de desviar desse caminho inevitável...



Celso Lopes


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