A sina dos Carmino-fogueteiro teve início com o meu bisavô, um tenente do exército que chefiou o setor de armas, munição e suprimentos do quartel. Assim que deu baixa, o velho Carmino, camufladamente, passou a fabricar fogos e vendê-los em toda a região. Empolgado com o novo ofício, o bisavô Carmino fez surgir os traques de massa, as bombas de palitinhos e as chuvas-de-prata... e logo que se mostrou competente, arregimentou gente, e então, vieram as espadas e todos tipos de foguetórios. Mas, ainda que fosse experimentado na fabricação, nada disso, impediu que a minha bisavó Joana, sempre contrariada com aquela “fábrica do inferno”, fosse a primeira a provar do veneno quente da pólvora numa explosão. E pouco tempo depois, chegava a hora e a vez do meu próprio bisavô Carmino!...
Desde que nasci, os Carmino-Fogueteiro já vinham, há muito, colhendo dissabores. Aqui e ali, pipocavam as explosões. Mas o pior dos acidentes aconteceu no dia em que eu chegava ao mundo. Enquanto a Mãe se contorcia com as dores e contrações diante da parteira Esmeraldina, que ali aguardava pra me aparar, uma faísca fez nosso galpão de trabalho, um barracão inteiro, voar pelos ares, tirando a vida de mais de 50 pessoas. Sabendo que seria perseguido, o Pai tratou de sumir com a família pela mata adentro, evitando deixar pistas. Herdeiro da saga do bisavô Carmino, o Pai, pouco a pouco, foi reorganizando a fábrica de forma escondida. Não demorou e os Carmino-fogueteiro cresceram a olhos vistos. O que era um quartinho dois por dois para armazenar o farelo, multiplicara-se por dez, vinte, trinta... As encomendas cresciam rapidamente.
Às vezes, enquanto eu me distraía com o foguinho – o vira-lata que me acompanhava desde criança – eu me via parado, conferindo as marcas e as cicatrizes dos Carmino-Fogueteiro. Uma pele sem vida. A mão chamuscada. Os membros ausentes. O Pai, o Pai era um desses. Perdeu o pé direito durante uma explosão... O tio Zé-Grande, uma das mãos ...Já o Enedino, uma faísca traiçoeira apagou nele o olho esquerdo....e o Pedrão seguia a vida sem o dedo polegar e o fura-bolo... Eu vivia inconformado. Cresci sem me acostumar com aquele barril de pólvora a um passo da explosão.. E como uma lei, ninguém falava dos riscos iminentes. Eu me recusava a enxergar os Carmino-fogueteiro alheios e tranquilos pelos cantos do barracão. Eu via apenas uns seres estranhos, ora acéfalos, ora gigantes, sem braços e sem pés, ora diminutos duendes, ora, ainda, frações de gente multifacetadas... e sem que eu desse conta de resistir, como se executasse um compromisso inadiável, certo dia, saí com o embornal e fui fazendo o filete, um rastro tortuoso com a pólvora, até se dissiparem os últimos farelos levados ao vento. Saí em silêncio pelos fundos da fábrica, livrando-me das interferências do foguinho, que rodopiava por entre minhas pernas, e segui pela mata densa até a clareira que se estampava no alto. Dali eu avistaria a minha noite estrelada, insistiam os meus fantasmas. Haveria um clarão infinito com a minha marca. Afinal, vinte anos após a tragédia, eu era o único dos Carmino-fogueteiro que não havia sofrido nenhum dano, nenhum arranhão; por certo, eu tinha a proteção de algum Anjo bom - dizia a Mãe. Eu mesmo, achava que ele, o Anjo, só estava adiando o meu revés. Enquanto foguinho rastreava o farelo, eu segui o meu destino: esvaziei o saco plástico com a pólvora no alto do morro. Era daquele ponto que eu poria fim à produção de meses e meses. Seria o desastre maior para os Carmino-Fogueteiro. Naquela noite escura, nasceriam os efeitos explosivos; num piscar de olhos surgiria a luz verde proveniente da mistura com o bário, e por último, a violeta, que irradiaria do potássio, seguido, ainda, de tons vermelhos cedidos pelo cálcio... Conferi o rastro da pólvora e reconsiderei a jornada: eu, ali, era apenas o executor, um carrasco de mim mesmo em nome de todos os Carminos. Eu me entregaria como o responsável, convenci-me. Cuidei, atentamente, de que nenhuma morte aconteceria. Haveria de causar só os danos materiais. Naquela noite memorável, eu veria a dança dos fogos... e depois, diante de um silêncio imperceptível, os morteiros, as espadas, os rojões, os vulcões, e por fim, por fim as cascatas contemplativas... O que se veria, ali, era o tiro de misericórdia, a última tragédia dos Carmino-Fogueteiro; era o recomeço de uma nova era, e o ponto final naquela maldita sina que nos acompanhara a vida inteira. Entretanto, como dizia o meu bisavô Carmino, o fogo a gente ainda não vê porque está frio, mas se olhar aquele farelo com mais atenção, a gente enxerga ali uma pantera negra de olhos fixos, pronta pra dar o bote. Aí, quando menos se espera, Xis-Tó-Tó!*... O Pai, o Pai que devia todo o seu aprendizado ao meu bisavô Carmino, fizera, ali, no escondido, sigilosamente, bem junto de onde acendi o pavio, um depósito subterrâneo pra armazenar a pólvora clandestina. O que eu quero dizer, é que comigo as coisas sempre foram diferentes, mas só até aquele dia em que deixei de ser o único dos Carmino-fogueteiro sem as marcas de explosivos pelo corpo. A pólvora, em comemoração ao meu aniversário, também reservara, generosamente, o meu presente, a minha cota-parte; e sem que eu me desse conta, foguinho, o vira-lata, como um prenúncio, foi a vítima fatal naquele precipício de luzes ... Por certo, por certo o meu Anjo protetor, o meu Anjo bom, que sempre me cuidara ileso, intocável, precioso, intacto até aquele dia, havia me abandonado à antiga sina dos Carmino-fogueteiro - disse a Mãe - enquanto me conduzia pelo corredor, amparando-me o corpo fragilizado pela ausência de membros, e não raras vezes, me servindo de luz na escuridão dos meus dias.
Celso Lopes
(*) Xis-Tó-Tó!... In: Grande Sertão: Veredas - João Guimarães .RosaAventura e meditação de A a Z – O Léxico de Guimarães Rosa Nilce Sant’anna Martins - Entrelivros No. 9 - pg 35
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