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Poder e afeto em Milagre da cela 7


Discutir sobre O milagre da cela 7, novo lançamento da Netflix, casa de sucessos na temporada “CinePandemia”, é uma tarefa muito interessante, especialmente pelas várias direções que a trama oferece, desde o retrato de uma cultura fechada em si mesma, marcada pelos privilégios dos poderosos, até o foco na relação familiar, em especial a relação entre pai-filha, fio condutor de toda a narrativa.

A trama se baseia na história de Memo, portador de uma debilidade cognitiva que o faz ter a mesma capacidade mental de uma criança, razão porque a avó se refere à relação entre o neto e sua filha, como uma relação entre pessoas com a mesma mentalidade. Justamente, por ter essa mentalidade, Memo constantemente ri para as pessoas ao seu redor e está sempre brincando com sua filha, desenvolvendo até uma comunicação única com ela, algo que pode ser observado nas falas do personagem “Lingo-lingo” e “Garrafas”, baseada em uma música popular turca Lingo- Lingo ŞiŞeler, que faz referência a um amor não-correspondido[1]. O desenrolar da trama começa a partir de um acidente no vilarejo, em que uma das crianças falece em uma queda, em que Memo é acusado e preso por solicitação de um dos militares da região.

É possível pensar Milagre da cela 7 como uma nova versão de outros filmes que se passam ou tem relação com a prisão tais como Um sonho de liberdade ou À espera de um milagre, uma vez que partem de uma premissa similar da prisão surpresa do protagonista. Contudo, ao contrário dos seus antecessores, o filme foca em um preso diferente, carente de uma capacidade cognitiva para compreender o que se passa ao seu redor, o que torna a narrativa mais interessante para ser observada em suas inter-relações.

Nesse sentido, é interesse compreender o que viria a ser uma pessoa deficiente. Segundo o DSM IV, a pessoa com deficiência mental seria alguém com uma redução significativa de suas funções intelectuais, que o limita na sua inserção dentro da sociedade, no que remete às formas de comunicação, cuidados pessoais, cuidados domésticos, saúde, educação[2], entre outras. Além dessas limitações inerentes, as pessoas com deficiência também sofrem com preconceitos e aceitações nos ambientes sociais, não sendo raros serem discriminadas com a criação de “apelidos” de forma jocosa sobre a sua condição. Situações como essa mobilizaram debates e a criação de leis para proteger e melhorar o acesso e o convívio dessas pessoas no mundo como o Estatuto da Pessoa com Deficiência, criada em 2015[3].

Outra questão interessante apontada pelo filme diz respeito ao local onde são enviadas as pessoas que não cumprem a lei, no caso a prisão. Prisão que fica caracterizada como um local fechado, sem comunicação com o mundo exterior, em que as pessoas são colocadas para pagar pelos seus crimes. Curiosamente, tal estrutura se assemelha com os extintos manicômios, um lugar fechado, onde eram jogados os loucos, muitas vezes, sem ter nenhum tratamento. No filme em questão, inexistia uma instituição assim, sendo levado o doente mental para uma prisão comum junto com os demais presos.

No que concerne à função social da prisão, vista como um local de punição àqueles que rompem as regras da sociedade, percebe-se a demarcação das posições de poder e privilégios, tanto dos agentes e diretores, quanto entre os presos, ressaltando aqueles que possuem autoridade para se dirigir livremente aos policiais e solicitar os bens do seu desejo. Nesse sentido, aponta-se para os militares como figuras de poder, pois em uma cidade do interior, eles ocupam uma posição privilegiada ao serem responsáveis pela aplicação da lei, cumprindo com a manutenção da ordem, fazendo valer as suas vontades. Dessa forma, suas ações se assemelham a uma espécie de “coronelismo”[4], prática comum na época da república velha no Brasil, em que os coronéis exercem o controle local das populações locais, o que gera medo e apreensão até pelos agentes da prisão, uma vez que sua vontade equivale a lei.

Observa-se uma hierarquia, também entre os prisioneiros, em que, os mais antigos possuem créditos e acesso a bens e direitos com os agentes de prisão, como também definem as suas próprias regras de convivência, chegando até a punir outros presos, caso percebam os seus crimes como imperdoáveis. Todavia, esse poder encontra limites perante a ação dos agentes e diretores penitenciários, encarregados de garantir a segurança dos presos. No caso do filme, a relação com uma pessoa deficiente, deu um novo significado para essa relação, uma vez que os presos tiveram que refletir se aquela pessoa era ou não responsável pelo crime, posto que sua capacidade cognitiva defasada e seu afeto com a sua filha deixavam dúvidas sobre a possibilidade de ser assassino, fazendo-o passar de alvo de punição para alguém a ser cuidado e protegido pelos presos.

Apesar de ter um roteiro simples, o filme apresenta uma boa execução, trazendo boas temáticas para reflexão, desde as relações familiares, a cultura turca, retratada na cidade e na prisão, e a inserção de pessoas com deficiência na sociedade, com todas as dificuldades de convivência, sobretudo em um cenário tão inóspito quanto a prisão. Em uma época de pandemia, quando nenhum contato é permitido, Milagre da cela 7 é uma boa lembrança da importância do afeto nas relações, seja no âmbito familiar, seja nas amizades.



Por Miguel Barros


Referências:



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