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Olaf

Atualizado: 21 de set. de 2020




Mais uma mensagem. A quinta em menos de trinta segundos. Ricardo pegou o celular pensando em colocá-lo no modo vibrar. Olhou de soslaio para o Sr. Otávio, o dono do escritório de contabilidade onde trabalhava como office-boy. A cara de impaciência dele indicava que os assovios de aviso de mensagem estavam incomodando. Engoliu em seco, deslizou novamente o celular para o bolso e voltou a organizar os papéis antes de se prejudicar. Já passara do seu horário, mas era melhor terminar o que começara. Soltou o ar, chateado. Quando ele iniciara o dia, não imaginava o quão seriamente encrencado ele terminaria.

O celular assoviou novamente. Só podia ser a Vanessa, Ricardo pensou irritado. Ainda seria demitido por causa dela. E pelo jeito, já estava bem perto disso. Ele foi em direção ao banheiro. Um bocejo sonoro ecoou pelas paredes daquele cubículo. Dia cheio, cansativo. Verificou o celular.

O que será que aquela garota queria dessa vez? Já não bastava tê-lo feito se arrastar da cama às cinco da manhã para ir à academia? Pensando bem, era melhor fazer marcação cerrada. Mesmo depois de uma noite de maratona de jogos online. Vanessa está ficando um arraso! E está cheio de gavião na academia!

“Mô”

“Tá lembrado que dia é hoje?”

“Já preparei aquela lingerie pra hoje à noite”

“Não vai esquecer meu presente”

“Se não, nada de comemoração”.

A última mensagem era a foto de um boneco de neve de pelúcia. A penúltima, era uma sentença de morte para sua vida amorosa. Vanessa estava obcecada para ganhar aquele presente. Nunca entendeu o interesse que as garotas têm por bichos de pelúcia, pensou balançando a cabeça negativamente. Porém, o fato mais estranho era que não se lembrava de que dia era hoje e nem de que comemoração sua namorada estava falando.

Não importa, a visão da Vanessa em uma lingerie nova, vermelha, de renda, aflorou em sua mente. Só aquilo valia o presente. Sonhando acordado com ela, Ricardo nem conseguia se lembrar que ainda estava no trabalho. Um pigarro alto chamou sua atenção e ele saiu do banheiro constrangido.

— Algum problema, rapaz? — A voz pastosa do Sr. Otávio combinava com sua barriga imensa de cerveja, os cabelos ralos e os óculos “fundo de garrafa”.

— Não, nada. — Era melhor terminar o serviço antes que o dia terminasse em uma tragédia, pensou Ricardo sem saber o quão perto da verdade estava essa premonição.

— Já comprou o presente do dia dos namorados? — Seu chefe perguntou adivinhando o teor das mensagens e o olhar sonhador de seu funcionário.

O olhar assustado e incrédulo que Ricardo lhe direcionou denunciou seu esquecimento e o porquê da cobrança insistente da namorada.

— Ahã! Esqueceu não foi? — O sorrisinho debochado e a cara de quem sabe mais do que todo mundo, faziam jus ao apelido que seus funcionários colocaram nele, Sr. Otário. —Vou fazer esse favor a você. Já são quase dezoito. — Disse-lhe olhando em seu enorme relógio de pulso. — Vai comprar o presente da sua namorada. Mas presta atenção filho. Você não pode colocar essa garota na frente do seu trabalho e nem dos seus estudos.

Filho, filho, Ah! Já não bastavam os sermões do seu pai?! Não tinha que aturar os do patrão! Favor. Ah favor. Faça-me mil favores. Ricardo pensava debochado enquanto arrumava suas coisas. Como se só sair alguns minutos antes do horário fosse um favor. Sei. Aflito, verificou o conteúdo de sua carteira com uma careta. Tomara que esse negócio que a Vanessa quer, não seja tão caro.

Saiu apressado. Já anoitecera. Suas esperanças de um encontro romântico feliz desvaneceram quando se lembrou, que a uma hora daquelas, quase todas as lojas já estariam praticamente fechadas. Por que fora esquecer o presente de sua mina? Ela, com certeza, não iria perdoá-lo. Ricardo passava as mãos freneticamente no rosto com o intuito de afastar o sono, o frio e o nervosismo. Talvez fosse melhor ir para casa e caprichar na performance e fazê-la esquecer do presente. Arg! Sabia que isso não daria certo. Sem presente, sem comemoração. Apressou o passo.

A rua estreita de casas coloniais, onde o escritório de contabilidade se situava, terminava em uma praça arborizada pouco iluminada. A noite escura, o assovio do vento gelado e as sombras ondulantes das árvores fizeram Ricardo estremecer e andar ainda mais rápido. Mesmo com o corpo cansado e os pés parecendo chumbo, a ameaça de uma greve por parte de sua namorada, instigou um pouco mais de energia em seu corpo.

Ao chegar ao fim da praça, Ricardo viu a loja de departamentos. As luzes, que deixavam as árvores com cara de seres malignos, piscaram. Apagaram. Acenderam. Era como se algo sombrio e sonolento estivesse despertando e prestando atenção em alguém interessante: ele. Um frio passou por sua espinha. A loja de departamentos ainda estava aberta. Que alívio, pensou Ricardo esgueirando-se para o interior iluminado como que perseguido por fantasmas. Alguns retardatários ainda estavam comprando presentes do Dia dos Namorados.

— Ei, moça, vocês têm aquele boneco do mundo das neves? — Perguntei à primeira vendedora que vi. Ao ver a cara de confusão dela, complementei: — O Otávio. Otário. Olavo. Sei lá.

— Ah! O Olaf, você quer dizer? — A vendedora estava sorrindo. E que sorriso! — O boneco de neve do filme Frozen?

— Acho que é esse mesmo. — Mostrei a foto que a Vanessa me mandara. — Mas tem que ser de pelúcia. — Complementei.

— Certo. Está no fundo da loja. Perto dos DVD’s e CD’s.

Ricardo foi na direção indicada, estranhando nunca ter visto nenhum bicho de pelúcia naquela área. Será que a vendedora estava mentindo de sacanagem ou trocaram os brinquedos de lugar? Toda a semana ele ia à essa seção para olhar as novidades. Sempre comprava algum lançamento de filme de terror ou um CD de rock e nunca tinha visto nenhum bicho de pelúcia por ali. Mas não é que estavam lá? Em um canto perto da sua seção favorita?

As luzes da loja piscaram. Que negócio chato esse de acende e apaga! Ricardo já estava ficando com maus pressentimentos. Cada vez que as luzes piscavam seus pelos se arrepiavam. Ele logo identificou o boneco de neve. Um meio sorriso safado e piscando um olho para ele no meio do que parecia uma infinidade de cores e formas de diferentes bichos de pelúcia. Não faria mal nenhum ver se já tinha chegado o último filme baseado na obra de Stephen King ou o box dos livros de contos do H. P. Lovecraft, que ele estava aguardando, faria? Já sabia mesmo onde estava o presente da Vanessa. Era só um minutinho. Estava sozinho naquela seção. Sem distrações. Então seria um instante.

A noite prometia. Um filminho de terror. A gata satisfeita com o presente, abraçadinha a ele com medo. Uma lingerie nova. Uau! Uma noite sensacional. Luz. Escuridão. Luz. Nossa, se der um curto e a cidade ficar às escuras, ficará ainda melhor! Legal! Ricardo pensou em relação a todo esse pisca-pisca. Só não pode faltar luz dentro de casa. Se não mela o filme. Ah, mas a noite romântica não! Ricardo até esqueceu o cansaço do dia e procurou o filme na maior empolgação. Nem notou os olhares furtivos em sua direção por entre as prateleiras de DVD’s.

As luzes piscaram novamente. A voz do gerente falando ao microfone que estavam quase fechando o fez lembrar-se do presente da Vanessa. Se chegasse sem ele, ela iria matá-lo e nada de noite romântica. Correu em direção à seção de bichos de pelúcia. Estancou ao vê-los se engalfinhar com caras malignas. Parecia uma briga de canibais. Ao som de sua chegada abrupta, todos giraram lentamente as cabeças em sua direção. Olhos estreitados. Sobrancelhas abaixadas. Sorrisos malignos. Cordas e facas nas mãos.

As luzes apagaram.

Antes que Ricardo pudesse pensar em se mover, sentiu alguém lhe dando uma rasteira. Caiu no chão com um baque surdo. Algo macio, mas forte agarrou em suas pernas e o arrastou para o canto mais escondido entre as prateleiras. Seus braços tentavam encontrar algo em que se segurar, mas foram amarrados. A sensação era de vários gatos bem peludos roçando a sua pele. Ele estava cercado por aquelas terríveis criaturas que as mulheres tanto adoram. Um bando de perversos bichinhos de pelúcia. Risadas sinistras e vozes abafadas ecoavam em seu ouvido. Tentou gritar por socorro. Sua boca foi coberta por uma pata peluda. Sentiu um peso enorme em sua barriga prendendo-o ao chão. O que era aquilo? O que estava acontecendo?

A luz voltou cegando-o momentaneamente. A primeira coisa que viu foi um enorme panda de pelúcia sentado em cima dele com uma cara sarcástica. O urso riu e lhe mostrou a língua. Um som estranho bem ao lado de sua cabeça chamou sua atenção. Era o Woody com uma faca na mão. Segurando-a bem no alto, como se só esperasse uma ordem para enterrá-la na cabeça desprotegida de Ricardo. Algo se arrastou do seu lado esquerdo e ele viu Nemo, Dori, um golfinho, uma tartaruga e alguns outros seres marinhos, com olhares malévolos e dentes afiados se aproximando do seu braço. Pôde sentir agulhas grossas penetrando quando eles cravaram os dentes em sua carne.

As lágrimas ensopavam seu moletom. Como sair daquela situação? Estava preso por dezenas, provavelmente uma centena de brinquedos de pelúcia, que ganharam vida e tentavam matá-lo.

Escuridão.

Uma pequena luz roxa brilhou na parede. Foi aumentando de tamanho. Todas aquelas criaturas olharam para lá. A expectativa era pulsante. Algo muito, mas muito ruim mesmo, aconteceria. Ricardo podia sentir. Por entre um emaranhado de cores e material sintético ele viu um lugar sinistro além da abertura que já dava para passar uma pessoa. Chamas lançavam línguas azuis para cima. Seres bizarros e fora da compreensão humana lutavam entre si para chegar à abertura e sair. Gritos horripilantes e choro de apelo feriam os ouvidos do aterrorizado prisioneiro.

— Levem-no! — Ricardo sentiu que não havia como desobedecer àquela ordem. Os olhos brilhantes e autoritários do boneco de neve que fora ali comprar, encontraram os dele.

Ele estava sendo erguido por um exército de bichinhos que deveriam inspirar fofura.

O grito de pavor saiu rasgando sua garganta. Mãos fortes agarraram seus ombros. Seu corpo foi todo sacudido.

As luzes acenderam.

— Cara, você está bem? — Um voz humana indagou.

Ricardo ficou sem entender nada. Olhou à sua volta. Alguns bichos de pelúcia estavam no chão. A maioria, nas prateleiras que cobriam a parede de cima a baixo. Olhou novamente para o vendedor preocupado. Segurou a mão estendida que ele lhe estendia e se levantou. Um grande urso rolou do seu colo.

— Mano, esses bichos estavam tentando me matar! — Ricardo falou numa voz rouca. Apontando para os agora fofos bichinhos de pelúcia, continuou: ­— Eles queriam me levar para, para... — Ele não sabia o que falar vendo todos estáticos lhe olhando com um sorriso. Menos o vendedor que o observava de forma estranha.

— Você parecia que estava dormindo. — O vendedor falou com jeito vendo o olhar assustado de Ricardo vagar dos bonecos de pelúcia para uma parede a sua frente. — Tendo um pesadelo. Você apagou, cara. — Agora, o vendedor o olhava com desconfiança. — Você bebeu? Fumou alguma coisa?

— Não! Não! Tá doido! — Será que ele tinha apagado de cansaço? Podia ser. Ricardo refletiu coçando a cabeça e passando as mãos no rosto. — Tenho que comprar um presente para minha namorada.

Seus olhos localizaram o Olaf imóvel. Não conseguia estender as mãos para pegá-lo. Ele estava normal. Com um sorriso feliz mostrando os dentões de Mônica. Como se nada tivesse acontecido. Como se não tivesse liderado a execução de um plano macabro. Como se há poucos instantes não quisesse matá-lo. Será que nada aconteceu? Que foi apenas um sonho? Será que ele estava ficando maluco? Será que tudo isso lhe ocorreu por não ter dado ouvidos a seus pais e patrão? Por ter corrido atrás de uma mina gostosa acompanhando-a numa maratona de exercícios na academia antes de ir trabalhar e depois de uma noite mal dormida? A confusão e o cansaço mesclavam-se embaraçando sua mente e deixando-o desnorteado.

O gerente chegou e perguntou o que estava acontecendo. Aos sussurros o vendedor lhe informou. Ricardo não conseguia tirar os olhos do boneco de neve.

— Rapaz, acho melhor você ir embora. — falou o gerente.

— Mas e o boneco? Tenho que levar. Minha namorada vai ficar uma fera se eu não chegar com ele. – Ricardo ainda não conseguia estender a mão e pegar o boneco.

— Amanhã você compra. — Os pulsos fortes do gerente seguraram seus ombros, guiando-lhe para a saída. – A floricultura vai ficar aberta até mais tarde hoje. Passe lá e leve flores para ela. ­— Ele sugeriu.

Era melhor seguir este conselho. O ar frio da noite clareou sua mente e já estava dando risada do ocorrido enquanto atravessava a praça, agora sem iluminação, em direção à floricultura. Estava assistindo muito filme de terror. Era isso. Só podia ser isso.

— Rá. Vanessa nunca que vai acreditar nessa história. — Ricardo falava alto consigo mesmo a fim de espantar o medo e o desconforto em sua garganta. — Ela vai me esfolar vivo porque não estou levando o boneco de neve de pelúcia, mas as flores tem que servir.

Algo se moveu no capuz do seu moletom. O ar da noite tornou-se gelado. A face direita de Ricardo ficou ardendo como quando queimada pelo gelo. Sua respiração formava vapor em contraste com o vento ártico à sua volta. Os pelos do seu corpo se arrepiaram. Uma voz cortante e maligna soou no seu ouvido.

— Se ela não acreditar em você, ela vai acreditar em mim. — Olhando de lado, Ricardo se deparou com o Olaf em seu gorro, mirando-o balançando a cabeça em feliz zombaria. — E, se ela não te esfolar vivo, pode deixar que eu mesmo faço isso.

Uma sinistra gargalhada cortou a noite, acompanhada pelo grito lancinante de Ricardo.



Carmo Bonfim

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