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Aconchego




Eram sete e meia da manhã quando o despertador tocou pela primeira vez, mas Roberto só levantou uma hora depois, tendo ativado o modo soneca a cada dez minutos. Mais um dia de isolamento social e acordar e levantar da cama continuava sendo a tarefa mais difícil do dia. Após realizar seu ritual básico de levantar, beber água da garrafa que carrega o tempo todo, ir ao banheiro jogar uma água no rosto e escovar os dentes, Roberto vai até a janela do quarto e verifica o que já não é mais surpresa: pessoas andando na rua, sem máscaras, rindo, conversando e trabalhando, ignorando totalmente o novo recorde de mortos. Após sentir a frustração queimando dentro de si, ele decide dar uma olhada no celular, e logo vê a mensagem que imediatamente arranca seu primeiro sorriso do dia.

“- Bom dia, amor”, escreveu Júlia. “- Que seu dia seja lindo”.

Nada de novo, pois esse era o bom dia habitual entre eles. Mas o ritual diário de desejarem um ao outro um bom dia era algo que Roberto amava, afinal de contas, como poderia o dia ser de fato bom sem aquela mensagem?

Tendo respondido a mensagem e tomado café da manhã, Roberto foi ao quarto, colocou uma camisa que ele normalmente usava pra trabalhar, mas permaneceu com o mesmo short que estava usando em casa, ligou o computador e se preparou para mais uma prática rotineira: encarar a tela aguardando ideias e checar o celular de cinco em cinco minutos em busca de alguma emoção. E claro, procrastinar.

Roberto era formado em jornalismo, tendo entrado nessa carreira por seu grande amor aos livros e ao esporte. Sonhava em cobrir grandes eventos esportivos em algum veículo de grande expressão, mas após ter sido dispensado do jornal onde estagiou na faculdade, se encontrava com dificuldades em se restabelecer no mercado. Agora, com a proximidade dos 30 anos se via cada vez mais pressionado (por ninguém, a não ser ele mesmo) a “chegar lá”, o que quer que isso queira dizer. Tendo praticamente desistido de qualquer jornal físico, ele buscava uma oportunidade no meio digital. Já nem sabia mais se queria trabalhar com esportes, se percebendo cada vez mais com uma atitude de “tanto faz, quero é dinheiro”, algo que ele na faculdade dizia que jamais viveria.

No momento, Roberto escrevia para blogs. Ele gostava da oportunidade de escrever para páginas com público pequeno, pois acreditava que lá podia aprimorar seus textos para crescer sempre mais. O problema era que essa estratégia já tinha alguns anos e nenhum grande ganho.

Pelo menos não financeiramente falando. Certa vez, Roberto escreveu um texto que era muito mais um desabafo, em que expressava um pouco dos seus medos sobre o futuro e como era difícil se estabelecer no mercado de trabalho. Recebeu uns três comentários concordando e agradecendo, pois aqueles leitores diziam estarem passando pela mesma situação e que era bom não se sentirem sozinhos. Aquilo foi extremamente gratificante para um jovem jornalista que está buscando seu espaço, mas, infelizmente, aquilo não pagava as contas de Roberto. Ele não gostava de enxergar as coisas dessa forma, mas precisava se tornar cada vez mais pragmático, afinal, ser adulto aparentemente exigia isso.

E quando parecia que as coisas não poderiam ser mais difíceis, chegam as notícias inesperadas: isolamento, quarentena, empresas fechadas, home office, pandemia... que confusão! Agora não havia escolha para Roberto, a internet seria seu espaço de trabalho. Porém, diariamente, era mais difícil manter a cabeça no lugar, fazer um texto coerente e que o agradasse, esquecer as pessoas morrendo, esquecer as pessoas na rua sem máscara, esquecer aquelas pessoas que ele tanto admirava, mas que agora ele só pensava nelas como “furadores de quarentena”, como pessoas que ignoram os tantos mortos... cada vez mais difícil trabalhar assim.

Roberto pega o celular novamente, mas dessa vez ele busca refúgio.

“- Amor, hoje tá difícil, viu? Não to fluindo nem um pouco.”

A resposta de Júlia não demora a chegar: “- Amor, você se cobra demais, você têm feito o seu melhor. Outro dia mesmo você escreveu um texto muito bom, lembra? Eu amei. Tenta se cobrar menos, só deixa fluir. Você é incrível!”

“- Vou tentar, meu amor. Obrigado pelo carinho.”

Roberto volta novamente sua atenção ao seu computador, mas não sem antes registrar que seu coração parecia estar mais quente.

*

Júlia estava no mestrado. Havia se formado em biologia e seguia a mesma área na sua pós, mas seu grande sonho ainda era ter um quarto para passar o dia todo pintando e conseguir se sustentar com isso. Enquanto isso não acontecia, ela precisava terminar sua dissertação, ler mil coisas diferentes, fazer sua pesquisa e claro, dava suas pinceladas sempre que podia, pois o sonho ainda estava vivo.

A jovem sentia uma vontade muito grande de provar seu valor. Seu pai era um homem de origem humilde e trabalhador industrial, e sua mãe costurava para uma loja de médio porte. Ambos lutaram para dar a ela educação e agora Júlia era a primeira da família na universidade. Na mesa onde trabalhava todos os dias, dois objetos eram seus favoritos: uma foto com Roberto, no dia do segundo encontro entre eles (no primeiro não tiraram foto, pois ele era tímido demais) e uma foto com seus pais no dia de sua formatura na graduação, ambos com os olhos marejados por verem a filha formada. O maior sonho de Júlia era dar a eles uma vida melhor, para que eles pudessem descansar, já que nunca puderam fazer isso na vida.

Estando em isolamento social, Júlia pôde adiantar ao máximo suas leituras, o que ela via como um ponto positivo do tempo extra em casa. Por outro lado, não podia ir a faculdade pesquisar no laboratório, o que era preocupante. Pouco depois de responder a mensagem de Roberto tentando acalmá-lo, ela se viu também angustiada, agora com a própria situação. Pegou o celular:

“- Beto, estou muito preocupada com minha pesquisa. Como vou terminar sem ir na faculdade?”

“- Amor, sei que isso é preocupante, mas por hora você não pode fazer nada por isso. Vou falar pra você a mesma coisa que você costuma me dizer: concentre-se no que você pode fazer hoje.”

“- Eu sei”, respondeu Júlia. “Mas isso fica na minha cabeça o tempo todo.”

“- Entendo, amor. Por hora acho que só podemos torcer pra essa vacina sair de uma vez. Além disso, as coisas estão reabrindo, talvez em breve você possa voltar pra sua pesquisa. Aguenta firme!”

“- Eu vou. Obrigado, amor. Bom trabalho pra você. Mais tarde nos ligamos?”, perguntou Júlia.

“Claro, amor”, confirmou Roberto.

Júlia decidiu encarar mais um texto longo para fazer o dia ser produtivo. Mas antes, olhou para a foto com seus pais e para a foto com Roberto. Enquanto abria o texto no computador ela nem percebeu que estava sorrindo.

*

“Pois é, foi bem difícil, mas até que eu consegui escrever uns parágrafos hoje, sabe? Depois que a gente se falou meio que veio um estalo e o trabalho fluiu melhor. Não terminei nada. Mas pelo menos comecei, já tinha uns dias que eu não começava um texto que me parecesse promissor.”, falou Roberto, no telefone.

“Que ótimo, amor”, disse Júlia. “Depois que a gente se falou também conseguir adiantar as coisas, li um texto muito bom e já estou até com ideias de como encaixar as informações novas na minha pesquisa.”

“Amor, que sensacional. Eu tô doido pra você terminar essa dissertação logo e eu poder ler. Imagina só eu escrevendo sobre isso. Já vejo a manchete, ‘Jovem pesquisadora linda e maravilhosa descobre remédio que cura todas as doenças do mundo’, vai ficar incrível demais.”, Roberto falou rindo.

“Para, seu bobo” dizia Júlia às gargalhadas. “Só quero terminar esse mestrado logo pra voltar a dormir sem estresse, não consigo tirar essa pesquisa da cabeça. Acredita que tenho pesadelo com isso? Vejo a banca me reprovando, eu hein.”

“Credo, amor. Tira isso da cabeça, você vai se sair bem. E vem cá, conseguiu pintar um pouco hoje?”

“Ah, hoje não deu, infelizmente, mas foi por um bom motivo. Eu realmente empolguei na leitura, sabe? Mas vou tentar adiantar muito meus trabalhos pra pintar bastante esse fim de semana.”

“Tá certo, amor. Foco nessa pesquisa pra acabar logo.”

“Ah,e nem te falei, hoje meus pais estavam de bobeira vendo televisão e acabou que eu fiquei um pouco com eles na sala, passamos a noite conversando e até jogamos o dominó velho do meu avô”, contou Júlia, empolgada.

“Que maravilha! Sei que você ama passar um tempo com eles.”

“Sim, amo demais. E preciso aproveitar essas chances quando aparecem, já que ultimamente só fico no quarto estudando.”

“Fico feliz então que hoje você tenha tido essa chance e tenha aproveitado.”

“Sim, eu também. Amor, acho que vou desligar. Preciso carregar um pouco o celular e vou tentar dormir logo, quero tentar acordar cedo amanhã”, disse Júlia.

“Também vou. Torcendo pra amanhã conseguir acordar mais cedo também, vou tentar não perder o ritmo de hoje. Boa noite, viu? Eu amo você”, falou Roberto.

“Boa noite, amor. Eu também amo você.”, respondeu Júlia. “Amanhã vai ser ótimo, você vai ver.”

“Tomara mesmo. Beijo, amor.”

“Beijão.”

Em suas casas, o casal se ajeitou cada um na sua cama para dormir, felizes pela conversa que tiveram. Naquela noite, Júlia não teve pesadelos com seu mestrado. Já Roberto, sonhou que Júlia lhe mostrava um quadro que ela havia pintado.



Raphael Lino Wandermur


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