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Dor de dente



A lembrança de você hoje me agrediu como a dor no dente que a gente só lembra que existe porque resolveu doer. Me perguntei por onde andará você, depois segui meu percurso e então me esqueci outra vez, com a naturalidade de quem já aprendeu algo da vida. Mas talvez seja só a bebida, ou qualquer coisa surrupiando minha atenção, você sabe, eu sou muito distraído. Certa vez joguei a chave de casa dentro do lixo sem perceber, e passei boa parte do dia trancado do lado de dentro revirando toda a casa atrás das chaves. Certa vez, te perdi. Acontece. Você é menos substância física que assombração do meu passado, hoje. Seu nome é mais poema que vocativo ou nome próprio. Ele não serve pra te chamar, ele já tem uma beleza que é só dele, embora você realmente tenha uma parcela de culpa nisso. Se fosse possível você ver como eu mudei... apesar de ser, fundamentalmente, o mesmo. Parece que quando penso em você na verdade eu estou pensando mais em mim. Eu lembro de você e de mim e da praia "num certo tempo", de você e de mim e do bar "num certo tempo", mas também de mim e da vida e do mundo no tempo em que a gente saía, mesmo sem você. O fundamental é o tempo e o modo como eu habitava o mundo nesse tempo. Lembrar de você é me desprender do agora e ser outra vez, momentânea e sutilmente, o eu de um tempo pretérito. Hoje eu lembrei de você, e de mim, e que o tempo passa, e que a gente morre, enquanto andava descalço no chão de terra quente com o sol de meio dia. Hoje eu lembrei de você, e de mim, e que a vida é dura e que a gente sofre, enquanto meus pés ardiam. Hoje eu lembrei, como se eu fosse um lago e sua lembrança fosse uma pedra provocando ondulações na minha superfície. Mas a pedra sempre afunda e a superfície sempre aquieta. Hoje eu lembrei de você, depois me esqueci.


Anderson Freixo


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