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Lobo de mim



Todas as ruas do meu bairro faziam referência a árvores. Eu morava na Rua dos Murungus, que ficava entre a Rua das Acácias e a Rua dos Ipês. Pelo que me lembre, em nenhuma delas havia sequer um único exemplar das respectivas espécies homenageadas.

Muitas crianças moravam na minha rua. Entre elas, dois irmãos. G. tinha a mesma idade que eu. G. era dois ou três anos mais novo. Nossas casas eram separadas por um depósito de madeiras. Embora não estivessem tão próximas, eu podia ouvir claramente o latido do cachorro deles, um pastor alemão que de vez em quando também uivava. Não sei se os uivos tinham a ver com o nome que deram a ele, Lobo. Talvez a escolha tenha sido motivada por algum uivo precoce emitido nos primeiros dias de vida. Pode ter sido coincidência que com o tempo tivesse desenvolvido a característica intrínseca ao seu nome. Ou quem sabe o nome só foi dado posteriormente quando então os uivos tenham se transformado em singularidade digna de registro permanente.

Nossa infância pertencia à última geração que cresceu sem computadores, tablets e celulares incorporados às necessidades da rotina. Quando não estávamos na escola, ocupávamos o tempo brincando na rua e também na casa uns dos outros. A casa dos irmãos G. era desproporcionalmente três vezes menor que o quintal, no fundo do qual havia pilhas e pilhas de tijolos soltos. Entre a parte de trás dessa montanha de tijolos e o muro, ficava escondido o lugar onde Lobo ficava preso durante o dia. Só durante o dia, porque à noite ele era solto para desempenhar a função de guardião da propriedade. Com frequência, eu e os irmãos G. brincávamos naquele quintal composto pelo mato e por algumas árvores frutíferas. Em especial, gostávamos da amoreira. Explodidas contra o corpo, as amoras deixavam manchas vermelhas que, por parecerem sangue, tornaram-se muito apropriadas à nossa brincadeira de guerrinha. Uma ou outra vez, via a cara de Lobo espremida entre os tijolos e o muro. Seu olhar expressava tédio e resignação em relação à condição de estar confinado. Naquelas ocasiões, nunca me passou pela cabeça o que poderia acontecer se Lobo conseguisse fugir de seu canil improvisado.

Não nos limitávamos ao quintal. Dentro da casa dos irmãos G., víamos jogos de futebol, como foi o caso da partida entre Brasil e Uruguai, disputada no Maracanã pelas eliminatórias da Copa de 94. Romário, recém-incorporado à seleção, só faltou fazer chover. E também, graças ao então sofisticado videocassete, assistíamos aos filmes da época, entre eles, Robocop, Indiana Jones, Retroceder nunca, render-se jamais. Certo dia, eu e os irmãos G. estávamos sentados à mesa de jantar, que era separada da cozinha por uma pequena bancada. Não lembro exatamente o que estávamos fazendo ali, mas o que aconteceu depois de quando a mãe dos irmãos G. soltou um grito de susto está vivo em detalhes na minha memória.

Parado na porta, com quase todo o corpo para dentro da cozinha, Lobo tinha as orelhas levantadas, a língua à mostra e salivante, seu olhar não se interessava por nada ao redor que não fosse eu. Depois que entrou, devagar e meticuloso, é que tive noção de seu verdadeiro tamanho, muito maior do que eu já havia imaginado. A mãe dos irmãos G. se distanciou do fogão, movimentando-se em nossa direção tão cuidadosamente que parecia que qualquer passo em falso faria o mundo despencar sobre ela.

– Não se mexe, não fala nada – disse ela, olhando para mim, mãos sustentando o rosto como na pintura O grito de Edvard Munch.

Lobo passou pela mãe dos irmãos G., ignorando-lhe os berros que o ordenavam sair da casa. Ao se aproximar de nós, conseguiu se desvencilhar do mais velho dos irmãos G., que tentou agarrá-lo com um abraço desajeitado. Já o mais novo dos irmãos G. apenas observava Lobo contornar a mesa sem que seu assombro o deixasse vencer o estado de paralisia. Certo de onde queria chegar, Lobo veio depressa até mim e minha reação inicial foi a que comumente se tem nessas situações, chamei por minha mãe, mas logo depois recobrei alguma racionalidade. Como estava sentado na cabeceira da mesa, na posição em que o encosto da minha cadeira quase esbarrava na parede, levantei depressa e me refugiei atrás da cadeira, ficando encurralado entre ela e a parede. Foi só o tempo de Lobo chegar bem perto. A frustração de ter sido bloqueado por um obstáculo inesperado fez aumentar seus gestos de perturbação. Não deixava de ser irônica a situação em que agora era Lobo que observava minha condição de estar preso. Impiedoso, ele então empinou as patas dianteiras, pousando-as no assento da cadeira. O focinho úmido, trêmulo e a centímetros do meu rosto farejava o pavor que eu sentia. Os olhos pareciam querer me tragar para dentro de sua escuridão severa. Dava para ver a pelagem se eriçar no contorno da mandíbula. E afinal eu era isto: o condenado à disposição das atrocidades que aquela mandíbula poderia me causar.

Mas aí Lobo se afastou. Não por conta própria. Foi puxado pela pele da nuca em um movimento abrupto feito pelo pai dos irmãos G., um sujeito carrancudo que passava os dias dormindo porque trabalhava durante a madrugada, sendo por isso que todas as vezes que eu e os irmãos G. brincávamos na casa deles éramos advertidos para não fazermos barulho. Enquanto Lobo era carregado para fora da casa, seus olhos permaneciam fixos em mim.

Curioso é que ao longo do acontecido, Lobo não latiu, não rosnou, não mostrou os dentes, e essas até seriam atitudes menos assustadoras do que aquele olhar que me encarava e me julgava como uma inadequação, como alguém não pertencente ao lugar que ocupa. É a minha justificativa sempre que me perguntam por que não sou dado a fazer visitas.

Flávio Sanso


Flávio Sanso é autor dos livros: A base do iceberg, A vida é um sorvete derretido e Viva Ludovico.

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